Aos 13 anos, o tecladista Richard Neves já tinha uma banda em Tiradentes, sua cidade natal. Pelos idos de 1995, alguém chegou na casa dele com o CD “Gol de quem?”. O garoto achou a capa (que reproduz os anjos da “Madona Sistina”, obra-prima do pintor renascentista Rafael) interessante. Colocou o CD para tocar e logo chegou à faixa 2, “Mamãe ama é o meu revólver”. “Cara, que coisa boa, que coisa ruim, que coisa estranha. Pausei, voltei a música, que me causou alguma coisa. Gostei da banda.”
Esta foi a primeira impressão que Neves teve do Pato Fu. Mal sabia ele que, 21 anos depois, entraria para o grupo (atualmente com 41, soma sete de banda). Trinta anos desde sua formação, o quinteto belo-horizontino ainda consegue suscitar reações diferentes com sua produção atual.
Lançada em janeiro passado, a canção “Silenciador” é absolutamente atual, tratando da exploração da fé por meio da violência – o refrão traz o verso “Deus fala pelo cano de meu revólver”. A contundência da letra do guitarrista e produtor John Ulhoa, de 57, que foi reticente quanto à gravação da música, é moderada pelo vocal sempre doce de Fernanda Takai, de 51. É agridoce, para usar um adjetivo que já foi muito empregado ao longo da trajetória discográfica da banda.
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“Silenciador” foi lançada junto a outros dois singles. Desde outubro de 2022, antecipando seus 30 anos (oficialmente no próximo mês de setembro), o Pato Fu vem lançando pacotes de três singles. Da leva inicial, “A besta”, composta e interpretada pelo baixista Ricardo Koctus, de 54, tem uma levada roqueira e uma letra ácida que também ecoa o passado recentíssimo do Brasil: “A besta lá vem/Fazendo piadas/Com hipocrisia arrebanhando imorais”.
Pois a última leva de singles, que vai completar o álbum “Pato Fu 30 anos” (título provisório), sai neste 31 de março. Recém-gravadas, duas são canções originais – “Diga sim”, que John havia lançado durante a pandemia e agora foi regravada com a voz de Fernanda num formato minimalista, e “Dias incertos”, sobre as dificuldades da vida, “uma conversa de amigos”, para John.
A cereja do bolo, e a que melhor traduz a estranheza intrínseca ao Pato Fu, é a versão “Amo só você”. Fosse com qualquer banda, ficaria kitsch, para não falar coisa pior. Com o Pato Fu e a voz de Fernanda, faz todo sentido.
Charada italiana
Ouvidos mais atentos não vão levar mais do que um minuto para matar a charada. A canção de amor, com arranjos de cordas (assinados por Ruriá Duprat, sobrinho de Rogério Duprat, conhecido como o maestro da Tropicália, e gravados pela Orquestra Ouro Preto) é a versão em português para "Io che amo solo te", de Sergio Endrigo, clássico do cancioneiro italiano, daqueles que tocam em qualquer sessão flashback de rádio, seja no registro original ou na gravação de Rita Pavone.
“Quando a gente começou a pensar nas músicas dos 30 anos, achamos que as três primeiras tinham que ser a cara do Pato Fu”, comenta John. Refere ao trio formado por “Curral mal-assombrado”, rápida, meio insana e cantada por ele; a supracitada “A besta” e “No silêncio”, pop em essência, composta e interpretada por Fernanda e produzida por Dudu Marote, o produtor mais importante na história da banda – assinou os álbuns “Televisão de cachorro” (1998), “Isopor” (1999) e “Ruído rosa” (2001).
Mesmo que o lançamento dos nove singles esteja ocorrendo nos meios digitais, a banda não descarta uma edição futura do álbum, em vinil. “A mídia física é quase uma forma de arte perdida. Mas a gente é old school, não é tão imediatista, não tem música com refrão em cinco segundos”, diz John. “Até porque, ouvindo uma música não dá para definir o Pato Fu. Este foi o nosso maior trunfo e também a maior dificuldade de mercado, pois não dá para nos jogar em um nicho”, completa Fernanda.
E assim foi desde o início. A história da formação é amplamente conhecida, mas traz alguns detalhes que corroboram a (boa) estranheza do Pato Fu.
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Nova banda por carta
Em 1990, John, então integrante da banda Sexo Explícito, mudou-se para São Paulo. Voltou para Belo Horizonte no ano seguinte e retomou outro grupo, Sustados por 1 Gesto, com Bob Faria. Neste retorno, convidou Fernanda para o grupo. Ele a conhecia como cliente de sua loja, Guitar Shop, no Centro de BH – Koctus, que era vendedor da loja, chegou a ser roadie de um show.
Pois, no início de 1992, Fernanda foi fazer um intercâmbio no Arizona. Neste meio tempo, Bob deixou o Sustados, e Koctus, que estava doido para entrar na banda, foi convidado para substituí-lo. Por carta, Fernanda foi avisada da mudança, inclusive do nome. Soube nos EUA que agora fazia parte de uma banda chamada Pato Fu. Voltou para casa em setembro de 1992, quando foram feitas as primeiras fotos do trio e também gravada uma demo em cassete.
Daí o fato de ser setembro o mês de aniversário do grupo. Mas o primeiro show mesmo do Pato Fu foi antes disso, e sem Fernanda.
“Éramos eu, John e um dinossauro no lugar da Fernanda. O primeiro show foi num congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes), no estacionamento do Mineirinho”, relembra Koctus, que, por um curto espaço de tempo, foi também o empresário da banda.
Já com Fernanda no trio, o Pato Fu fez uma série de apresentações até o final de 1992, a maior parte delas em calouradas. Veio o primeiro disco, “Rotomusic de liquidificapum” (1993), gravado no antigo estúdio de Haroldo Ferreti, baterista do Skank. Custou US$ 500, valor dividido em 10 sessões de gravação, realizadas à noite, pois todo mundo trabalhava durante o dia.
Até então um trio – a bateria era eletrônica, os 128 Japoneses, ou Japs, que acabaram nomeando o estúdio de John –, o grupo convidou, em 1996, o baterista Xande Tamietti, de 50. Depois de oito anos fora, o músico, que atualmente mora no litoral de São Paulo, retornou recentemente para o Pato Fu.
O novo álbum será o de número 13 da banda. Ficar junto e relevante por tanto tempo não é fácil. As explicações são várias, cada um ensaia a sua. “É tanto pelo relacionamento que a gente tem como também pelo fato de termos sido bem-sucedidos, o que faz você cuidar mais da banda”, diz John. “Acho que a gente tem mais liberdade de fazer outras coisas além da banda, o que oxigena a nossa história”, completa Fernanda, que intercala o grupo com sua carreira solo.
Koctus vai por outro caminho. “O Pato Fu é uma banda que circula no mainstream, mas não com o perfil de grande vendedor de discos. Continuamos juntos porque a música que fazemos é a mesma, não entramos em onda, sempre seguimos a nossa linha.” E houve ainda o fator “Música de brinquedo”, que gerou dois álbuns (2010 e 2017) fenômenos de venda e que renovaram o público da banda.
Ilha de Caras
Banda é um casamento, diz o senso comum. Pois no Pato Fu a história é mais complicada, pois são dois: o da banda e o de John e Fernanda, casados há 27 anos. “É tão difícil ter uma banda e ter um casamento. Mas casamento dentro de banda? Se a gente não se preservasse, se brigasse, a banda acabaria também”, diz Fernanda, que procurou manter o relacionamento o máximo possível fora dos holofotes. Houve um tempo, diz, que muita gente nem sabia que ela e John eram um casal.
Uma história saborosa vem disso. Anos 90, auge das gravadoras, com Pato Fu contratado pela BMG e bom vendedor de discos, chega a proposta. A gravadora havia conseguido emplacar uma matéria na “Caras” no estilo “o amor é lindo”. A visibilidade que a revista dava era impressionante naqueles anos pré-rede social. “De jeito nenhum”, disse a banda. “Mas como? Custamos para aprovar a pauta!”, retrucou a gravadora.
Chegaram a um consenso. Fernanda embarcou para a Ilha de Caras, mas sem John, que ficou em casa. Em seu lugar foi Koctus. “Ela levou o Ricardão”, brinca hoje o baixista. A matéria saiu, só com Fernanda, que falou exclusivamente sobre a banda. Já o “Ricardão” só curtiu umas férias, nadando com o Paulo Zulu e a Deborah Secco. Mais Pato Fu, impossível.
Turnê à vista
As comemorações dos 30 anos do Pato Fu vão se multiplicar ao longo de 2023. Até o final deste semestre, a banda dará início à turnê comemorativa, com hits de sua trajetória e as novas canções. No segundo semestre, também está previsto o lançamento do álbum resultante do encontro com a Orquestra Ouro Preto, em uma série de shows realizados em Minas, no fim do ano passado.
Além disso, o grupo se juntou ao Giramundo e, em janeiro e fevereiro passados, gravou as duas temporadas de uma série para o Nickelodeon, no melhor estilo “Os Muppets”. “Uma banda com 30 anos entregar tantas coisas novas é uma vitória, ainda mais no Brasil”, diz Fernanda Takai.
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