Imagina acordar um dia e não reconhecer a casa que construiu, nem ao menos o próprio filho. Sua última lembrança vem da faculdade, quando odiava a colega de classe que hoje é sua esposa. Esta é a história de Luiza na websérie “Stupid wife”, interpretada pela atriz Priscila Reis, de 33 anos.
 
A artista conversou com o 'Estado de Minas' sobre os desafios de sua primeira protagonista, além de revelar detalhes sobre a segunda temporada.
 
"Stupid wife” é uma história de amor baseada em uma fanfic (narrativa ficcional criada por fãs, tendo ídolos reais como personagens) escrita por Nathália Sodré, com foco na banda feminina Fifth Harmony.
 
O grupo, formado no show de talentos americano “The X Factor” em 2012, se desfez em 2017. Ali se destacaram as cantoras Camila Cabello e Lauren Jauregui, que hoje seguem carreira solo.

Na fanfic brasileira, Camila Cabello “virou” Luiza (Priscila Reis). A moça, que sofre de amnésia dissociativa, perde a memória da vida adulta. Sua última lembrança é de quando, muito jovem, odiava Valentina (inspirada em Lauren Jauregui), papel de Priscila Buiar.
 
Luiza e Valentina se casaram, têm um filho, mas tudo isso se apagou na memória de Luiza. Os oito episódios da primeira temporada mostram a reviravolta na vida dela ao se redescobrir como mãe de Léo (Thomás Araújo, de 5 anos) e ao se reapaixonar pela esposa.
 
Priscila Reis, de costas, olha para a câmera

Priscila Reis, a Luiza de 'Stupid wife', viveu sua primeira protagonista na websérie lançada em 2022

Lukkas Maques/Divulgação
 
 
A websérie é realizada pela produtora independente carioca Ponto Ação, e teve a primeira temporada exibida entre agosto e outubro de 2022, disponível no YouTube de forma gratuita. A narrativa teve grande repercussão entre o público LGBTQIA+ e até o momento alcançou quase 34 milhões de visualizações, com oito episódios.
 

Confira a entrevista de Priscila Reis

Como foi o início da sua trajetória profissional?

Comecei ainda criança como atriz, fazia teatro e sempre amei muito! Depois fiz peças infantis, com a atriz Luciana Coutinho que tinha um projeto em que a gente levava o teatro para escolas públicas do estado do rio. A gente viajava apresentando peças infantis. Eu amava isso. 

Aí a moda atravessou minha vida. Estava no McDonald's, um empresário me viu e falou que eu tinha jeito para ser modelo. Acabei indo conhecer a agência e aí a moda veio. Mas sempre ficou guardado no coração (minha vontade de ser atriz), falava que um dia voltaria a atuar, porque é o que  amo de verdade, o que me alimenta. Segui a moda muito mais pela oportunidade de viajar, conhecer outros lugares, pessoas.

Toda vez que voltava para o Brasil, estudava, fazia participações, fiz muito teste para ‘Malhação’. Depois de 11 anos viajando e morando fora, eu já tinha chegado onde queria como modelo e falei: ‘Agora vou voltar para minha paixão’. Voltei para o Brasil, comecei a estudar de novo, corri atrás e estamos começando a colher os frutos.

Quando vieram os primeiros papéis na TV?

Nessa época, ficava vindo e voltando para o Brasil e sempre tinha alguma coisa, fiz várias participações. Isso aconteceu porque já tinha meu cadastro na Globo.

Desde que voltei para o Brasil, há seis anos, comecei a focar bastante e fui fazendo testes. O longa que fiz da (diretora) Júlia Rezende, ‘A porta ao lado’, foi de um teste em 2017 para um filme da Ingrid Guimarães. Não passei, mas ela se lembrou de mim e me chamou para o longa. Depois veio a Netflix, com ‘Todo dia a mesma noite’.

Como você conseguiu o papel de Luiza em “Stupid wife”?

Estava pensando em como as escolhas que a gente faz na vida mudam nosso destino. O teste de ‘Stupid wife’ veio no Instagram e eu, uma jovem senhora, não sou uma pessoa de ficar olhando direct. Aquele dia, decidi olhar a DM e a Rafa, que trabalhava na primeira temporada como produtora, falou que estava fazendo teste para a webserie. Olhei e pensei: ‘Será que faço isso? Uma websérie, como funciona?’. Estudei e fiz, agora estamos aqui.

Como é interpretar uma lésbica?

Sei que é uma responsabilidade enorme pela representatividade. Me sinto muito honrada, até porque a minha irmã é lésbica e ela sempre quis fazer faculdade de cinema. Eu falava: ‘Mas por que você quer fazer cinema? Não te imagino fazendo isso’. Ela respondia: ‘Quero fazer para produzir conteúdos a que eu possa assistir. Os conteúdos são fracos, as grandes emissoras não têm’. Ela dizia que estava muito vazio o mercado.

Hoje ela está no caminho da gastronomia. Mas quando veio a personagem, que  li e entendi, juntei o que ela me falou e fui vendo todas essas outras milhares de pessoas que também têm essa necessidade. Então, como atriz, me sinto fazendo minha missão, porque o papel do ator é dar voz, chegar em lugares que às vezes outras artes não chegam. Foi um presente, fico muito feliz com essa potência (da série), vejo relatos de como é importante. Mas é uma responsabilidade enorme.

O público costuma confundir a personagem com você, a atriz?

Depende. O público brasileiro, menos. Não sei se por entender a língua, acompanham meus stories no Instagram, as entrevistas, a galera não confunde tanto. Mas quando abro a caixinha de perguntas, vejo a galera gringa fazendo perguntas que não são sobre a Reis, mas sobre a Luiza. E somos pessoas diferentes. 

Chegou a ler a fanfic? Conhece as cantoras?

Quando tudo começou, não. Cheguei lá, já tinha minha personagem, o roteiro. Aí as meninas, Natalie Smith e Priscilla Pugliese (diretora e produtora da série), começaram a me explicar. Claro, conhecia Fifth Harmony, a Camila Cabello, mas não era o meu mundo ainda. Ali fui descobrindo e estudando. Li a fanfic, mas confesso que não consegui ler o livro todo porque é enorme e a gente começou a gravar antes de receber o livro. Então já fui lendo e gravando, mas não cheguei a terminar a história. 

Mas também a gente ia fazendo a nossa própria construção, dentro do nosso roteiro. Mas vejo que foi uma fanfic muito importante na vida de muita gente. 

Qual foi o maior desafio da primeira temporada?

Eu nunca tinha feito uma protagonista, já tinha feito trabalhos menores. Como atriz, é um grande aprendizado. Eu converso com a Buiar e falo: ‘Caramba, amiga, imagina gravar uma novela com oito meses, ou um longa que são anos’. A gente às vezes grava 12, 15 cenas por dia e numa novela são 35, 40. Então, foi um desafio estar ali, tentando fazer o melhor.

Também entendi que nem sempre consigo dar o meu melhor por estar muito cansada. Foi uma virada na minha carreira. Hoje me sinto mais segura em um teste.

Como se preparou para abordar temas fortes como a amnésia e perder o filho?

A amnésia dissociativa, tivemos a ‘sorte’ de a mãe de uma das pessoas do elenco ter vivido isso. Pude conversar com ela por horas, com todo o respeito e indo ao limite dela. Conversei com ela e a filha para entender quem vive e quem sente, foi um grande laboratório. Tanto que o momento em que a Luiza tira a aliança veio dela. Ela falou que quando sofreu o trauma, regressou aos 15 anos, e já era uma mulher de mais de 40 anos. A primeira coisa que fez foi tirar a aliança. Aí pensei em pegar isso, porque faz todo sentido com a questão da faculdade. Além disso, minha mãe é psicóloga. Pude conversar com ela sobre como é, se já teve paciente, pesquisar na internet. 

A questão do filho... Tenho muita vontade de ser mãe, então fui trabalhando internamente essa vontade, como seria, o que na minha vida se aproxima disso. Aí a gente vai usando técnicas de atuação que nos levam a entender esses lugares.

Qual foi a cena mais difícil de gravar na primeira temporada?

Muitas. As cenas em que a Luiza rejeita a Valentina eram difíceis, porque não posso julgar o personagem, se está certo ou errado. Então, tentar colocar meu senso julgador de lado e falar aquelas coisas, por mais que fosse a Valentina, ao mesmo tempo é a Buiar (atriz), minha amiga, uma pessoa doce. A cena da bebedeira em que a Luiza olha na cara dela e fala: ‘Você é hipócrita, mimada’. Eu ia falando aquilo, a Reis com um aperto no coração e ao mesmo tempo munida com os motivos da Luiza, ela tem motivo para achar tudo aquilo. 

As cenas da casinha, a que ela sonha com o aborto, também foi bem difícil. Mas foi muito orgânica, porque quando dei por mim e vi o sangue, foi meu lado mulher, foi bem física a sensação. Foram cenas desafiadoras. 

Qual foi a cena que você mais gostou de gravar?

A do vinho, por mais que tenha sido difícil. Estava com muito medo, como atriz, de cair em um lugar canastrão, de fazer aquela bêbada meio do boteco e ficar no estereótipo. Foi uma cena bem orgânica e tenho muito carinho por ela. Acho que também a cena onde elas voltam a se reconectar, quando a Luiza muda o olhar.

Enquanto a primeira temporada mostra a Luiza sem memória, o ‘Especial de Natal’ conta a história do casal antes desse trauma. Como foi viver os dois lados?

Falei para a Pugliese que a gente devia ter gravado o ‘Especial de Natal’ antes. Como a gente não gravou na ordem cronológica, temos de anotar no texto. Por exemplo: neste momento elas já tiveram o primeiro beijo, vou estar agindo de uma forma. Aqui elas não se beijaram, então o corpo é outro. Então, quando gravei o ‘Especial de Natal’, já tendo todo o estofo da primeira temporada, estava num lugar mais confortável e pude brincar com essa outra Luiza, mais leve. 

A primeira temporada foi mais desafiadora até por eu estar experimentando. Agora, na segunda, que já sei os dois lugares, fica mais fácil de entender esse termômetro.

O que você pode contar sobre a Luiza na segunda temporada?

A segunda temporada vai costurar muitas coisas que ficaram em aberto. Tem vários temas, coisas da relação das duas, a gente vai pegar essa linha e ir costurando. Eu, como uma grande ‘Luizer’, estou adorando, porque daremos várias respostas aí. Se preparem, estou bem ansiosa para ver. 

Estamos gravando há bastante tempo, está bem bonito. Nós amadurecemos muito não só como atrizes, mas nas relações. A relação da Luiza e da Valentina está mais azeitada com a Duda, o Igor, a própria Catarina, que no 'Especial de Natal' ganhou um espaço enorme.
 
 
 

Já sabemos de uma cena da segunda temporada que a Luiza vai se apresentar para uma plateia grande, e vocês convidaram os fãs para participar. Como foi essa gravação?

Foi um dia muito difícil para mim. Estava ansiosa desde quando a Natalie falou que o público seriam os fãs. A bachata, em si, já me tira da zona de conforto, porque é uma dança totalmente diferente do que a gente conhece. Não é como se o corpo tivesse memória, porque não é como forró, samba, é uma coisa que precisa começar do zero. 

Como a gente trabalha com muito pouco tempo, tive de pegar uma dança nova com as coreografias em dois dias. A gente foi gravar as danças um mês depois que aprendi. Então,(nesse meio tempo) teve gravação, ensaio. Como vou me lembrar daquela dança que aprendi em um dia, 12 horas? Isso estava gerando desconforto, ainda por cima sou alta e magra, fico desengonçada. 

Quando me disseram dos fãs, falei: ‘Gente, vou dançar na frente dos outros, morrer de vergonha e não queria decepcionar. Galera estava vindo de outros estados, pagando passagem para estar aqui. Já pensou se for uma merda?’. No dia, eu queria não existir. 

Na noite anterior, liguei para o Ian (Braga) assim que saí da gravação, às 20h, fui para a casa dele e a gente ensaiou até as 23h sem parar. Dormi, fui para a gravação e não queria existir. Estava assim: ‘Gente, por que existe este dia? Por que escolhi essa profissão? Por que estou fazendo isso comigo? Não precisava fazer isso’.
 
Mas tive a sorte de ter um amigo, parceiro incrível que segurou minha mão e falou: ‘Amiga, estou aqui, a cena é sua, confia. Eu tive mais tempo para ensaiar, então estou aqui fazendo para você, só confia em mim e vamos’. Ele ficava me colocando para cima o tempo todo: ‘Você está linda, é segura, uma grande atriz, vai’. 

Isso foi me dando um lugar… Depois que terminou a primeira coreografia, ninguém falou nada, o público não falou nada e eu falei: ‘F*deu’. Não gostou, ninguém entendeu, deu errado. Mas aí o corpo deu uma aquecida e falei: ‘Cara, é isso, já foi a primeira’. Fiquei mais confortável, a galera já reagiu e gostou. Mas foi uma descarga de adrenalina no meu corpo.

O público sempre elogia a conexão que você tem com a Priscila Buiar, a Valentina. O que pode destacar dessa parceria?

Mandei uma mensagem para ela no Dia das Mulheres, no sentido de tudo isso que a gente vive, ainda mais no nosso meio que tem muito ego, muita vaidade. Nos duas poderíamos ter cruzado com outra atriz que de repente competisse em cena, tivesse esse jogo. Mas pelo contrário. A gente teve a sorte de se encontrar em um lugar de parceria, torcendo uma pela outra, então me sinto honrada e sortuda de ter cruzado com uma parceira de cena tão dedicada, inteligente. 

Como para a gente esse mundo foi tão novo, ninguém vai entender o que estamos vivendo, a não ser ela e eu. Falo para ela: 'Amiga, independentemente dos caminhos que nossa vida seguir, tem coisas que a gente viveu aqui e nunca vamos esquecer, me atravessou para sempre’. Claro, toda a nossa conexão em cena reverbera para nossa vida pessoal. Então, a gente já era amiga, se conhecia, mas aí o laço se estreitou. Brinco que é como se fosse uma parceria de vôlei, uma está levantando a bola para a outra o tempo todo. É muito maneiro.

Você esperava o sucesso da série?

É muito engraçado, porque às vezes tenho a sensação de que a ficha não caiu. Como é virtual, a gente vê as mensagens, mas quando a gente conhece o público, que a gente abraça, olha nos olhos… Por isso gosto das cartas, pois as pessoas dividem a vida e é aí que a gente tem dimensão do tamanho da coisa, do nosso trabalho. Me sinto privilegiada de poder ter um público tão sensível, porque são pessoas muito sensíveis, muito humanas, amorosas, acolhedoras. 

Durante a série, passei pelo luto da perda do meu pai. E o carinho que recebi, minha irmã, minha mãe e que venho recebendo até hoje, é surreal. Ao mesmo tempo, a ficha não cai e fico me sentindo muito abençoada.
 
A gente está chegando a lugares como podcasts ou trending topics pelo público, por vocês. Só gratidão, porque se não tivesse esse carinho, essa recepção, a gente não seria nada. O que é o ator sem o público? É muito visceral, fico muito lisonjeada e ao mesmo tempo com a responsabilidade enorme de entregar o melhor dentro do que posso ser.

Vocês prometeram aos fãs que iriam viajar pelo Brasil para encontrá-los. Essa "Caravana Valu" virá?

Quero muito" (risos) A Natalie quer me matar toda vez que posto isso e aproveito a live, deixo ela supervendida. A gente quer muito, mas tem de ver o que é viável por agenda, projetos, Brasil é gigante. Como contemplar todo mundo? Mas todas as vezes planto uma sementinha.

Pode vir aí a terceira temporada?

As meninas (Natalie Smith e Priscilla Pugliese, que comandam a produtora) são muito misteriosas com isso. Eu adoraria, tenho certeza de que a Priscila (Buiar) também, para continuar contando essa história. Quanto mais a gente entra no mundinho Valu, mais a gente quer contar as coisas e viver isso.
 
É tão abrangente, né? A relação com o Leo, nossa relação, conflito com a Catarina, conflitos com os outros personagens, dá vontade de fazer 15 temporadas. Mas tem toda a questão da produtora, a estrutura que é para levantar uma série. Depende de várias coisas. Mas a gente está torcendo, sim. 

Você já veio a Belo Horizonte?

Fui fazer uma marca, no ano passado. Cheguei às 23h30, fiquei no hotel, fotografei e do estúdio já me levaram de volta. Não posso dizer que conheci BH, mas tenho amigos muito queridos daí. Quando morava fora, os brasileiros se juntavam muito e a gente fazia nossa minicomunidade. A maioria dos meus amigos são mineiros.

Você participou de 'Todo dia a mesma noite', série da Netflix, e agora do filme 'A porta ao lado'. Virão mais projetos este ano?

Participar desses dois projetos foi muito importante. A gente tem uma responsabilidade social muito grande. Da mesma forma que em "Stupid wife" a gente trata de  representatividade, “Todo dia a mesma noite” também é assim. Fala das vítimas da Boate Kiss, famílias que vivem o luto há 10 anos, o descaso da Justiça em relação a isso. Foi muito difícil contar essa história. Revivê-la estudando, lendo livro, vendo relatos e depoimentos.

A gente gravou em um espaço no Rio de Janeiro igual à Boate Kiss, eles montaram tudo igual, então de certa forma a gente viveu tudo aquilo. Foi muito transformador na minha vida, fico muito feliz por também ter repercussão muito boa. Ficou em primeiro lugar por várias semanas aqui no Brasil, em Portugal, na Polônia.

Da mesma forma com “A porta ao lado”,  meu primeiro longa. Acho que o sonho de todo ator é fazer cinema, estar ali na telona. O filme também fala sobre as relações. Hoje em dia, a gente fala tanto sobre amor, relacionamento aberto, fechado, quais são os acordos de uma relação. Poder fazer um filme depois do qual o público sai pensando é quando vejo que estou cumprindo meu papel.
 
A pessoa vai para casa ou pensando sobre as vítimas, as famílias, ou pensando sobre Valu. Ou então pensando em qual é o acordo de seu relacionamento, o que topa ou não topa. Estou feliz com esses projetos bem legais. Vêm vindo outras coisas aí também.