A infância triste e ensimesmada na pequena Formiga traduziu-se em temor quando Silviano Santiago, então um adolescente de 11 anos, mudou-se com a família para a capital. Contrariando as expectativas, foi na Belo Horizonte dos anos 1940 e 1950 que ele descobriu a liberdade – e esta veio no encontro com novos amigos e as artes.
Aos 86 anos, Santiago, radicado há quase 50 no Rio de Janeiro depois de viver na França e nos EUA, retorna de forma simbólica à cidade que o formou. Intelectual completo – professor, ensaísta, poeta, contista, romancista – e em constante atividade, ele toma posse na sexta-feira (24/3) da cadeira de número 13 da Academia Mineira Letras, sucedendo a Paulo Tarso Flecha de Lima (1933-2021).
A posse vai ocorrer somente um ano e meio após sua eleição, em outubro de 2021, em decorrência da pandemia. A crise sanitária – que o afastou de Belo Horizonte, sempre visitada por causa dos laços familiares – também o domou. “Com a pandemia, aprendi o que é de doméstico”, diz Santiago.
Mas foi também durante a crise – algo “tão inesperado, tão violento, tão absorvente” – que o mineiro lançou novos títulos: as memórias “Menino sem passado” (Cia. das Letras) e o ensaio “Fisiologia da composição” (Cepe Editora), sobre Graciliano Ramos e Machado de Assis. Também veio a público, em nova edição comemorativa dos 40 anos de publicação, o romance “Em liberdade” (Cia. das Letras).
Ele ainda colheu frutos. Recebeu, em 2022, o Prêmio Camões, mais alta distinção da língua portuguesa. A premiação veio se somar a uma série de outras ao longo da carreira, como o Jabuti (já recebeu meia dúzia deles), o Machado de Assis, o Oceanos e o José Donoso.
Na posse, o novo acadêmico será apresentado pelo agora colega de AML Wander Melo Miranda, professor, escritor e crítico, autor da tese de doutorado “Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago”. Os acadêmicos Maria Esther Maciel e Angelo Oswaldo também terão participação no evento.
Silviano Santiago viveu apenas 12 anos em BH, de 1948 a 1960. Na residência da Rua Mato Grosso, 935, no Bairro Santo Agostinho, o filho do meio de 11 irmãos também começou a trabalhar. Primeiramente no balcão da Dental Santiago, que o pai, farmacêutico de formação e cirurgião-dentista de profissão, abriu no Centro.
Nas artes, a paixão inicial foi o cinema. Com os amigos que fez em BH, escritores, atores, bailarinos e artistas plásticos, descobriu a vida da boemia e da cultura, que acabou o levando para a universidade. Graduou-se em letras neolatinas em 1959, pela UFMG – foi por meio do DCE da instituição que lançou seu primeiro livro, “4 poetas”.
Deixou a capital mineira no ano seguinte para se especializar em literatura francesa, no Rio de Janeiro. Dali, ganhou o mundo – primeiramente como aluno, com doutorado na Universidade de Paris- Sorbonne. e, posteriormente, como docente. Nesse retorno a Minas por meio da AML, Santiago vê o “reencontro do velho com sua juventude”.
O senhor foi eleito em outubro de 2021 para a Academia Mineira de Letras e, em junho de 2022, retirou sua candidatura para a Academia Brasileira de Letras, onde era apontado como favorito. Por quê?
Foi uma questão de foro íntimo e se refere muito a minha própria carreira. Eu me sustentei a vida inteira pela universidade, sendo professor. Então, minha vida social sempre foi muito restrita à universidade. Eu nunca dei aula em mais de duas universidades simultaneamente. E assim como sempre tive uma única universidade, agora é uma única academia. Não se acumula essas coisas. Tenho 86 anos. Estou, como se diz a respeito de remédios, com a data de validade a perigo. Se é para tocar no assunto, temos que ser realistas. A única coisa que está acontecendo é que continuo trabalhando, produzindo. Não estou entrando para a Academia porque parei de trabalhar. Agora estou escrevendo sobre Machado de Assis e Proust, está bastante adiantado. Vivo da melhor maneira possível, faço muito ginástica, pois tenho uma lombalgia violenta, fiz uma cirurgia dos olhos... É uma realidade um pouco mais dura, mas que vale a pena tocar. Enquanto se puder, claro.
Qual o sentido das academias de letras?
Evidentemente, o reconhecimento do saber de um determinado cidadão. No caso de uma universidade, isso se dá por concurso; na academia, por eleição. Eu estava muito mais acostumado só com a vida social na universidade. Essa outra vida social é uma novidade para mim. Quando entrei para a AML era isso o que esperava: uma nova experiência de sociabilidade intelectual.
Sua entrada na AML é também um retorno a Minas, não?
Meu lado libertário, para falar a verdade, vem da juventude em Belo Horizonte. Aos 11 anos, minha família se transferiu para Belo Horizonte. Eu estava com muito medo porque não estava preparado para uma cidade como Belo Horizonte. Meu pai logo fundou a loja (Dental Santiago, no Centro) e fui trabalhar com ele no balcão. Trabalho desde os 12 anos. Estava meio desesperançoso, mas tive a enorme sorte de encontrar amigas e amigos que me acolheram bem. Todos se interessavam por arte, então tive uma adolescência muito libertária. Era um grupo extraordinário, o Complemento (também nome da revista que ele publicou, com Maurício Gomes Leite e Heitor Martins, entre 1956 a 1958), que se associou ao grupo de balé do Klauss Vianna, ao Teatro Experimental do Carlos Kroeber, às artes plásticas... Era um tipo de vida boêmia muito rica, embora meus dias fossem tomados pelo trabalho e pelo estudo. Era uma vida dividida entre trabalho, prazer e cultura. De certa forma, esse retorno a Minas agora significa o reencontro do velho com sua juventude.
No início de 2021, foi publicada “Menino sem memória” (Cia. das Letras), a primeira parte de suas memórias, com a infância em Formiga. Na última vez em que nos falamos, em outubro de 2022, quando o senhor recebeu o Prêmio Camões, disse que não continuaria com o projeto. Mudou de ideia?
Não. A pandemia foi um acontecimento tão inesperado, tão violento, tão absorvente que, de repente, me entregar a uma memória individual me pareceu um exercício meio fútil, sobretudo porque há uma premência pela vida e não tenho meu tempo disponível por um longo tempo. Por isso, optei por estancar um pouco isso. Se eu viver mais do que espero, e eu espero, talvez eu volte ao relato. Que seria exatamente sobre a minha vida em Belo Horizonte (nos anos 1950) e a primeira experiência no Rio de Janeiro (no início da década de 1960). Achei melhor fazer outro tipo de testamento, um testamento intelectual, que é o que posso oferecer depois de não sei quantas décadas de trabalho como professor, crítico e criador.
Qual é o conceito geral do trabalho que une Machado a Proust?
De maneira simplificada, seria a questão do ciúme em “Dom Casmurro” e “Um amor de Swann”. De maneira mais ampla, seria para mostrar como Machado é um romancista que trabalhou sua inserção na literatura universal na periferia brasileira. E que, no entanto, graças ao seu talento, conseguiu fazer uma obra tão grande quanto a de Proust. Temos que discutir com muito cuidado a noção de universal. O valor universal não é necessariamente centrado no Ocidente. Hoje, o valor se encontra exatamente em uma visão democrática de cultura. São várias culturas que compõem a cultural universal.
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Nesta altura da sua vida e carreira, depois de ter lido e escrito sobre tantos autores, quais são os mestres do senhor?
Em tudo na vida eu fui muito libertário e volúvel. Tenho inúmeros mestres, paixões de acordo com as estações da vida. Machado é a paixão da minha velhice, eu diria. A paixão da juventude, os mestres, foram muito mais Carlos Drummond e Guimarães Rosa. Em seguida, houve o mestre da Sorbonne, André Gide (objeto de seu doutorado, defendido em 1968). E também os autores modernistas e os clássicos da literatura, que começaram a exigir cidadania na minha vida.