Marco Pigossi está recostado a poltrona e tem imensa borboleta sobre o rosto em cena da série 'Cidade invisível 2'

Marco Pigossi em "Cidade invisível 2", série da Netflix, cujo catálogo tem 5% de produtos brasileiros

Netflix/divulgação

Demanda antiga do audiovisual brasileiro, a regulamentação do setor de vídeo sob demanda, o VoD, ensaia enfim uma saída do papel. É o que indica a Agência Nacional do Cinema (Ancine), ao divulgar o primeiro grande relatório sobre o mercado no Brasil, apresentando dados que ajudam a entender o momento atual de transformação na indústria audiovisual e nos hábitos de consumo.

Criar uma legislação para regular o vídeo sob demanda, ou o streaming, é tarefa do Legislativo, vale frisar, mas órgãos públicos, representantes do mercado e a sociedade civil também devem se cruzar no caminho à frente.

“A Ancine tem um corpo técnico experiente, que vem lidando há bastante tempo com as políticas públicas para o setor e cujo conhecimento pode ajudar a tornar o caminho mais fácil. O estudo divulgado surge com essa proposta, principalmente porque já temos percebido a dificuldade de discutir qualquer ação regulatória ou de fomento sem dados confiáveis sobre o segmento”, diz Tiago Mafra, diretor da agência.

Plataformas escondem dados sobre audiência

Publicado no mês passado, o Panorama do Mercado de Vídeo por Demanda no Brasil esclarece diversos detalhes do setor um tanto nebuloso, devido à resistência das plataformas em divulgar dados como os de audiência. Ajuda, ainda, a entender os motivos de a regulamentação ser assunto urgente.

Talvez o dado que mais chame a atenção seja o que quantifica a participação de conteúdo brasileiro nos serviços de streaming que operam no Brasil. Em média, as plataformas têm apenas 10,9% de produções nacionais em seus acervos. Quem se saiu pior foram Vix, que não pontuou, Claro Video, com 0,7%, e Starzplay, com 1,2%, hoje rebatizada de Lionsgate+.

No outro extremo da lista, o Box Brazil Play apresenta 91% de filmes e séries locais, seguido pela assinatura digital de canais Globo, com 57%, e pelo Globoplay, com 30%.

Entre as principais plataformas em operação no país, há ainda Amazon Prime Video, com 5,7% de produções nacionais no catálogo, e Netflix, com 5%, além de HBO Max, Star , Disney e Paramount , abaixo dos 3%.

Para chegar a esses dados, foram considerados apenas os conteúdos que têm registro no IMDb, base de dados on-line voltada a cinema e televisão que reúne, entre outras informações, o país de origem de cada produção. Com isso, 37% das 32 mil obras analisadas pelo estudo precisaram ficar de fora. Os dados foram coletados em julho do ano passado.

Há esforços por parte das empresas para reverter o quadro, embora o cenário ainda seja desfavorável. A Netflix, por exemplo, tem promovido eventos dedicados a produções nacionais e lança, nesta semana, a segunda temporada de “Cidade invisível”, trama que retrata o folclore brasileiro e se tornou um caso raro de sucesso no exterior.

Protagonizada por Marco Pigossi, nome cobiçado pelas plataformas que já atuou para elas em português, inglês e espanhol, a série se junta a outros exemplos de sucesso, como “Bom dia, Verônica”, da mesma Netflix, “Dom” e “Manhãs de setembro”, do Amazon Prime Video, e “O rei da TV”,  do Star.
 

O problema, porém, não está só em injetar dinheiro na indústria local para que novos conteúdos floresçam, mas também na preservação e distribuição de outras obras, em especial as independentes.

 

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Coreia do Sul valoriza a produção local

Tiago Mafra, diretor da Ancine, estima que elas representam porcentagem ainda mais tímida dos acervos, apesar de o relatório não chegar a tal nível de especificidade.

“A participação do conteúdo brasileiro no VoD segue o padrão dos outros segmentos, com grande predominância dos conteúdos estrangeiros. Esse é um comportamento comum na maior parte dos mercados audiovisuais, com exceção de poucos países, como a Coreia do Sul”, diz ele, lembrando ainda França, Canadá, Portugal, Espanha, Itália e Suíça como exemplos de países que regulamentaram o setor de forma bem-sucedida.

São legislações que podem servir de espelho para o Brasil, ao definirem pontos como a porcentagem mínima de produções regionais nos acervos e a conversão de lucros em investimento para a indústria. Na França, por exemplo, Netflix e companhia precisam destinar de 20% a 25% da renda no país para a criação de conteúdo local.

Uma das demandas do setor no Brasil é justamente a incidência da Condecine, a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, que compõe o Fundo Setorial do Audiovisual, sobre as plataformas estrangeiras que atuam por aqui.

O pedido está contemplado nos projetos de lei 483/2022, 2.331/2022 e 57/2018, de autoria do deputado David Miranda (PSOL) e dos senadores Nelsinho Trad (PSD) e Humberto Costa (PT), respectivamente.

 Raquel Hallak sorri para a câmera

Criadora da Mostra de Tiradentes, a mineira Raquel Hallak defende transparência total dos dados sobre faturamento e visualizações em plataformas

Nereu Jr/divulgação

Carta de Tiradentes apresenta sugestões

Para auxiliar o debate, Raquel Hallak, coordenadora da Mostra de Cinema de Tiradentes, que nesta semana exibe filmes da última edição do festival em São Paulo, fundou o Fórum de Tiradentes, iniciativa que reuniu cerca de 70 profissionais do audiovisual para elaborar uma carta com problemas e demandas para o setor.

Dividida em diferentes grupos de trabalho, a ação classifica como urgente a regulamentação do VoD. Na semana retrasada, alguns representantes entregaram a carta a Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, bem como a outras autoridades públicas. Eles se puseram à disposição para auxiliar no debate que se aproxima.

Hallak elenca como prioridades a garantia de direito de propriedade intelectual para o criador de obras lançadas no streaming, a transparência de dados de faturamento e visualizações e, claro, a garantia de exibição de conteúdo brasileiro nos serviços e a destinação de faturamento para fomentar a indústria.

“Não é uma discussão fácil. Há vários interesses envolvidos, e a gente não teve um cenário político favorável para o setor recentemente. A gente estava há quatro, seis anos apenas garantindo a nossa sobrevivência. E estamos falando de bilhões de reais de faturamento", afirma a coordenadora de Tiradentes.

É uma conversa longa e complexa que poder público, agentes do setor, plataformas de streaming e a população civil precisam ter, diz ela. Justamente por isso, o relatório recém-divulgado pela Ancine é de suma importância para facilitar e embasar o diálogo.
 

Brasil tem maior oferta de VoD

Dele, saíram ainda as informações de que o Brasil é o país onde há a maior oferta de plataformas de vídeo sob demanda entre as20 nações da América Latina avaliadas.
 
São 59 no total, à frente das  53 da Argentina e das 50 disponíveis no Chile. Isso atesta que o mercado já está suficientemente maduro e consolidado por aqui. Apenas seis dos 20 países da amostra têm mais de 40 plataformas disponíveis para os consumidores.

Por outro lado, o Brasil é o país com a menor média de preços para a assinatura de serviços de VoD, com valor de US$ 5,64, sendo a assinatura de R$ 19,90 a mais praticada no país. O país onde o preço médio é mais caro é El Salvador, com US$ 10,03, seguido de Bolívia, com US$ 8,62, do território americano de Porto Rico, com US$ 8,44, e Guatemala, com US$ 8,26.

Mafra explica que o motivo para o valor reduzido se deve justamente à alta oferta de serviços. “O Brasil, dado seu tamanho e público consumidor, tende a ser um ambiente que oferece mais espaço para a criação de serviços de streaming voltados para nichos específicos. Com isso, há também uma grande variação no preço.”

Segundo o relatório, a plataforma que concentra a maior parte das 32 mil obras disponíveis no VoD brasileiro é o Amazon Prime Video, cujo catálogo tem 5,8 mil filmes e 1,8 mil séries, que somam mais de 48 mil episódios. Ela é seguida pela Netflix, com 5,2 mil títulos no total.