Em um dos primeiros ensaios para o concerto “Chico Rei e a Confraria do Rosário”, a regente da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais (OSMG), Ligia Amadio, reuniu os músicos e fez uma preleção sobre a obra “Bachianas nº4”, de Heitor Villa-Lobos. A peça abre o recital que será apresentado nesta quarta-feira (22/3), no Grande Teatro do Palácio das Artes, pela OSMG e o Coral Lírico de Minas Gerais.
Ao comentar sobre o terceiro movimento, Ligia explicou que o compositor carioca traduziu em forma de música uma paisagem majestosa e, ao mesmo tempo, agreste e dura do Nordeste brasileiro.
“Esse movimento traz um pouco dessa questão do destino. O destino fez com que o eu lírico nascesse naquele local e naquelas condições duras, mas o impulso dele de vencer a miséria o fez lutar. Para isso, ele tem que sair dali e abandonar as pessoas que ama”, disse aos músicos.
“De certa forma, nós, músicos, também somos meio retirantes. Temos que sair de nossa casa e deixar quem amamos para trabalhar em algum outro lugar”, comparou.
Ao final do ensaio, um comovido tubista se aproximou da regente e contou sua história. Era Aldo Bibiano. Nascido e criado na comunidade quilombola remanescente do Sapé, em Brumadinho, ele, ainda criança, acompanhava os jornais e programas de rádio todos os dias para saber quando a Orquestra Sinfônica de Minas Gerais se apresentaria.
A possibilidade de assistir aos concertos era a maneira que havia encontrado para sair da própria bolha. Até então, a única referência que tinha de música eram os ritmos tradicionais do congado e as marchas tocadas pela banda local, da qual fazia parte como tubista.
Nos dias de apresentação da Sinfônica, o ainda aspirante a músico Aldo partia para Belo Horizonte logo depois da aula e ficava no Palácio das Artes, na esperança de conseguir um ingresso gratuito. “Eu saía por volta das 11h30 e chegava lá pelas 15h. O concerto era só às 20h. Aí eu ficava esperando”, ele conta, em entrevista ao Estado de Minas.
“Eu não tinha dinheiro. Minha irmã, que trabalhava fazendo faxina numa padaria lá da comunidade, me dava uns trocados para a passagem e uma sacolinha com pão para eu não passar fome. Só chegava de volta em casa já de madrugada”, relembra.
Mesmo quando não conseguia os ingressos, ele ficava feliz. “Pelo menos, eu tinha ido até aquele espaço que nós (quilombolas) não acreditávamos que fosse para a gente.”
Hoje, aos 39 anos, ele é o primeiro quilombola a ocupar o cargo em uma orquestra profissional do Brasil. Foi o segundo negro tubista em uma orquestra profissional - a Orquestra da Bahia foi a primeira a contratar um tubista negro. Aldo também foi o primeiro integrante de sua comunidade a se formar no ensino superior por uma universidade pública.
Por obra do acaso, suas raízes se cruzam com a proposta da sinfônica com o concerto desta quarta-feira. Além de “Bachianas nº4”, o repertório do recital contará com as peças “Maracatu de Chico Rei”, de Francisco Mignone, e “Choros nº 10 – Rasga coração”, também de Villa-Lobos.
“Eu já estou há quase cinco anos na orquestra e agora foi a primeira vez que contei sobre minha origem. O apagamento que a história de Chico Rei sofreu e ainda sofre (é raro você ver algo concreto da história dele) tem uma relação muito próxima com a gente que é da comunidade quilombola. Nós também sofremos esse apagamento”, afirma.
Os moradores do Quilombo do Sapé sofreram diversas dificuldades e ainda tiveram de enfrentar por muito tempo a hostilidade de muita gente da cidade, inclusive o preconceito dos próprios representantes do poder público. O instrumentista relata que, certa vez, um prefeito de Brumadinho chegou a inventar um nome pejorativo para se referir à comunidade.
O concerto desta quarta-feira coincide com o Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, e o Dia Internacional Contra a Discriminação Racial e tem o objetivo de ressaltar a influência da cultura africana para a formação da identidade nacional.
No palco, orquestra e coral juntam num único repertório dois compositores com características completamente diferentes, mas que pensaram o Brasil musicalmente por meio de suas múltiplas referências culturais, num processo de integração cultural.
Villa-Lobos não escondia sua admiração pelos compositores clássicos europeus e a influência que eles exerceram em suas obras. No entanto, buscou nas músicas africana, indigena, popular e no choro uma sonoridade única e original.
“Hoje, Villa-Lobos é quase um sinônimo de brasilidade”, observa a regente Ligia Amadio. “Ele captou outras influências e desenvolveu uma linguagem muito mais pessoal. É um discurso mais grandiloquente e até mesmo agressivo, com sons de animais, árvores caindo, água correndo. É tudo mais vibrante.”
Essa sonoridade é evidente no segundo movimento de “Bachianas nº4”, quando xilofones, flautas e oboés simulam o canto da araponga.
Já no terceiro movimento, citado pela maestrina nos primeiros ensaios e que muito comoveu o tubista Aldo, Villa-Lobos recorre ao cancioneiro popular para contar a história de superação dos retirantes. Para isso adapta o tradicional verso do folclore nordestino “oh, mana, deixa eu ir/ oh, mana, eu vou só/ oh, mana, deixa eu ir/ pr’ o sertão do Caicó”.
A peça termina com o quarto movimento, no qual passos de samba se misturam com trechos de "Vamo, Maruca, vamo”, música carnavalesca composta em 1915 por Juca Castro e Paixão Trindade.
“Villa-Lobos rompeu com toda a forma clássica europeia de fazer música, diferentemente do Mignone”, comenta Ligia. “Mignone fazia música de acordo com os cânones da escola clássica europeia. E, ainda que tenha abordado um tema africano, como é ‘Chico Rei’, a maneira que ele expressa essa história é baseada em princípios de uma literatura musical que nós conhecemos por Haydn, Mozart e Beethoven”, diz.
“Maracatu de Chico Rei”, que vem na sequência de “Bachianas nº4” é um bailado que conta a história do personagem-título, o rei congolês do século 18 escravizado pelos portugueses e levado para Ouro Preto.
Depois de comprar a própria liberdade, continuou trabalhando e alforriou sua mulher e todos os membros restantes da tribo. Foram esses libertos, conhecidos como “Tribo de Chico Rei”, que formaram a confraria do Rosário e ergueram a Igreja da Senhora do Rosário, na cidade mineira.
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“Chico Rei e a Confraria do Rosário” termina com “Choros nº 10 – Rasga coração”, peça integrante de série de 14 obras criadas por Villa-Lobos que exploram elementos de percussão, deixando a canção com uma sonoridade que se assemelha ao samba e ao baião.
“CHICO REI E A CONFRARIA DO ROSÁRIO”
Orquestra Sinfônica de Minas Gerais e Coral Lírico de Minas Gerais interpretam obras de Heitor Villa-Lobos e Francisco Mignone. Nesta quarta-feira (22/3), às 20h, no Grande Teatro do Palácio das Artes (Av. Afonso Pena, 1.537, Centro). Ingressos à venda por R$ 20 (inteira / plateia 1), R$ 15 (inteira / plateia 2) e R$ 10 (inteira/ plateia superior), na bilheteria do teatro ou no site da Fundação Clóvis Salgado.