Não há como falar de “O rio do desejo”, filme de Sérgio Machado que chega nesta quinta-feira (23/3) aos cinemas, sem relacioná-lo com a estreia do cineasta baiano na ficção. “Cidade Baixa” (2005) tratava de um triângulo amoroso entre dois amigos barqueiros e uma stripper que viviam na região portuária de Salvador. 





O novo longa, também ambientado à beira d’água e com um barco como cenário, leva para a cena uma intrincada relação amorosa – três homens, irmãos, se apaixonam pela mesma mulher. Tanto por isto, carrega tintas trágicas, uma grande diferença entre o filme de quase duas décadas atrás, que unia três atores em ascensão, Lázaro Ramos, Wagner Moura e Alice Braga. 

Baseado no conto “O adeus do comandante”, do livro “A cidade ilhada” (2009), de Milton Hatoum, foi rodado em Itacoatiara, terceiro maior município do Amazonas, banhado pelos rios Solimões e Negro. 





Na história, o Capitão Dalberto (Daniel Oliveira) se apaixona por Anaíra (Sophie Charlotte),  ao ser chamado para averiguar um caso de violência na casa onde ela vive. Abandona a polícia e compra um barco para ter uma vida mais tranquila com a futura mulher.

Viagem

 Recém-casados, eles vão viver na casa que Dalberto divide com os irmãos. O mais velho é o introvertido e controlado Dalmo (Rômulo Braga), que herdou o ofício de retratista do pai já morto. Armando (Gabriel Leone), o caçula, tem personalidade solar e trabalha com uma banda. Uma longa viagem de Dalberto ao Peru deixa Anaíra sozinha com os dois cunhados – e a dinâmica nesta família muda completamente quando eles também caem de amores por ela.

 “Às vezes não sabemos porque falamos de determinados assuntos. O filme tem a ver com ‘Cidade Baixa’ e também com meu próximo, uma animação para crianças, que vai tratar de dois ratos que se apaixonam por uma rata. Não sei se é falta de imaginação, mas acabo voltando aos assuntos que me interessam”, comenta Machado.





Para o diretor, outro ponto em comum são os personagens femininos. “Eles são sempre brilhantes. A Anaíra traz luz para um mundo masculino que é mais escuro e menos interessante. E esta luz tem um sentido de liberdade.”

Até a estreia nos cinemas, “O rio do desejo” passou por um longo processo. O filme foi rodado em 2019, durante três meses, o que incluiu a preparação do elenco, também na cidade de Itacoatiara.  Estreou no circuito de festivais em novembro passado, no Black Nights, em Tallinn, na Estônia, de onde saiu com o prêmio de melhor fotografia para Adrian Teijido. Produzido pela Gullane Filmes, aqui dando um passo maior como distribuidora, já foi vendido para 15 países. 

Recuperação

Fabiano Gullane afirma que a batalha é grande para que “O rio do desejo” faça um bom público nos cinemas. “O Brasil é um dos países que mais tem demorado para recuperar o mercado de antes da pandemia. Os filmes grandes estão fazendo boas bilheterias, mas os médios e pequenos que despontavam antes, não. As pessoas voltaram para o show, para o carnaval, mas não para o cinema. Claro que temos a questão econômica, que talvez seja a razão do não consumo de ingressos, mas a gente tem que retomar o hábito de ir ao cinema para ver os nossos filmes.”





Manauara radicado há muito em São Paulo, Hatoum comenta que “O rio do desejo” não mostra a “Amazônia exótica, para inglês ver, ou a Amazônia pulmão do mundo, que é um mito também”. Para o escritor, o filme mostra a “Amazônia real, que foi transcendente. Acho que os atores e atrizes perceberam isto profundamente. Como diz Guimarães Rosa, ‘sou de onde nasci, sou de outros lugares’. Ou seja: você pode ser de onde nasceu e ser de outros lugares. Quando um ator faz outros, ele é outro sendo ele mesmo. E isto que é bonito na arte. Nada foi falseado neste filme.”

Para os atores, a vivência em Itacoatiara, desde a preparação, realizada por Fátima Toledo, foi essencial para que encontrassem o tom certo para os personagens. O calor e os mosquitos foram parte importante do processo. “O calor lá é diferente. Quando cheguei a Itacoatiara, e era por volta do meio-dia, tive um impacto grande. Onde estão as pessoas? Pois elas se recolhem, só voltam para a cidade no fim da tarde”, diz Sophie.

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Rômulo Braga, nascido em Brasília e vivendo há anos em Belo Horizonte, comenta que até a sesta era sagrada para os animais. “É impressionante, das 10  da manhã até as 3 da tarde você não ouvia nem passarinho. E a gente trabalhava de sol a sol, respirando aquele ar quente e úmido”. Braga conta que o dia que mais impactou foi quando iria filmar uma noturna, na beira do rio, em volta de uma fogueira. “Não sei por que, mas o insetos começaram a me carregar. Não conseguia me concentrar.”





Pela primeira vez contracenando no cinema com o marido, Daniel Oliveira, Sophie diz que a temporada em família (o filho do casal, Otto, virou mascote da equipe) foi maravilhosa. “A gente tinha feito duas séries, mas queria fazer cinema com ele, pois a experiência no set é muito mágica. E tive uma rede de afetos e segurança grande para poder me lançar em questões humanas tão desafiadoras. Anaíra tem uma vivência muito pulsante. O mistério todo que a obra do Milton tem é um portal sobre o feminino, o amor e o desejo, de outro jeito, menos moralista.”

Para Gabriel Leone, a beleza dos personagens está no não julgamento. “Olhamos para todos de forma absolutamente humana, independentemente das escolhas de cada um. O filme não entra no lugar maniqueísta de quem está certo ou errado, tanto em relação aos três irmãos, quanto a Anaíra.”

Leone ainda diz quão fundamental foi permanecer um longo período na cidade. “O fato de a gente ter chegado antes de filmar, ter tido tempo para entrosar com a vida dali, nos trouxe, minimamente, uma propriedade para a história que estávamos contando. As ruas em que andávamos para ir jantar foram as mesmas em que fizemos cenas emblemáticas. Isto nos deu uma sensação de pertencimento àquele lugar.”



Sophie Charlotte interpreta Anaíra, e Daniel Oliveira vive o Capitão Dalberto na história escrita a partir do conto "O adeus do comandante"

(foto: GULLANE Filmes/DIVULGAÇÃO)

Filme pode gerar novo livro de Hatoum

“O rio do desejo” é a terceiro trabalho adaptado de uma obra de Milton Hatoum, também autor dos romances “Dois irmãos” (2000), que virou a minissérie homônima lançada pela Globo em 2017, e “Órfãos do Eldorado” (2008), que se transformou em filme, em 2015, sob a direção de Guilherme Coelho.

Mas, pela primeira vez, o escritor aparece como corroteirista – função aqui dividida com Maria Camargo, Sérgio Machado e George Walker Torres. “A inclusão do meu nome como roteirista foi um ato de extrema generosidade do Sérgio, porque não sei fazer roteiro, que exige uma técnica muito específica. Apenas escrevi alguns textos para encorpar o roteiro”, diz Hatoum.

Este “encorpar”, na verdade, foi muita coisa, como explica Machado. “Quando comecei a adaptação, Milton me disse que o conto é a ponta do iceberg, que ele sabe muito mais do que escreve. Sabe o que acontece antes do conto e o depois. Então falei: ‘Se você sabe, escreva’. O roteiro então é muito mais inspirado nos outros contos (escritos somente para o filme), pois, no original, por exemplo, não existia o personagem do Dalmo.”





A parceria deu tão certo que atualmente Machado negocia os direitos de adaptação de “Cinzas do Norte”, romance lançado por Hatoum em 2005. E os contos que serviram de base para o roteiro de “O rio do desejo” poderão se tornar um novo livro. “Luiz Schwarcz (fundador da Companhia das Letras, editora de Hatoum) está botando pilha para que ele transforme os contos em uma novela. Se acontecer isto – um conto que virou filme que depois virou livro –, eu vou e adapto de novo”, diz Machado. 

“O RIO DO DESEJO”  (Brasil, 2022, 107min.)
• Direção: Sérgio Machado.
• Com Sophie Charlotte, Daniel Oliveira, Gabriel Leone e Rômulo Braga.
• Estreia nesta quinta-feira (23/3), nos cines Cidade 3, às 21h05 (exceto domingo) e 19h30 (somente domingo) e UNA Belas Artes 1, às 14h, 16h e 18h10.  

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