No palco, Maurício Tizumba, Sérgio Pererê e Júlia Tizumba contam, cada um em momento diferente, lembranças de suas vidas. Todos os casos têm ao menos uma característica em comum: um passado ancestral único que tem início no continente africano com povos que vieram escravizados para o Brasil.





Subitamente, Tizumba para a performance, pede licença aos atores, pega o celular e sai de cena. É um dos últimos ensaios antes da estreia de “Herança”, peça que estreia nesta sexta-feira (24/3) e segue em cartaz até domingo (26/3), no teatro do Centro Cultural Unimed-BH Minas - haverá ainda apresentações entre os dias 28 e 30 de abril. Com a proximidade da estreia, cresce o assédio de jornalistas para cima de Tizumba. Por isso, as paradas abruptas nos ensaios.

“O jeito é dar uma espremida na agenda, interromper os ensaios e falar rapidinho para dar conta de atender todo mundo”, afirma.

Em dezembro do ano passado, o artista completou 65 anos de vida e 50 de carreira. Embora o fascínio pelo mundo artístico tenha começado ainda na infância, aos 7, 8 anos, quando o pai o levava para participar de programas na extinta TV Itacolomi, foi somente com 15 anos que o garoto se emancipou e decidiu seguir carreira na música, tocando em bailes da capital mineira. 

“Marasmo” 

O primeiro disco foi lançado em 1981. O compacto “Marasmo” trazia a faixa-título (composição de Cláudio Pérsio) e a canção autoral de Tizumba “Lembrança do cativeiro”. Enquanto a primeira se assemelha ao baião, “Lembrança do cativeiro” é uma balada romântica com uma sonoridade bem próxima a de Raul Seixas em suas músicas de amor. 





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As percussões, marca registrada de Tizumba, já estão ali, mas de maneira discreta, passando despercebidas aos ouvidos desatentos.  

Em 1981, lançou “Caras e caretas”, mas foi somente em “África Gerais”, de 1996, que começou a explorar as características que hoje tomam conta de suas produções. Está neste álbum, por exemplo, “Sá Rainha”, uma de suas principais músicas.

Tizumba ainda lançou os álbuns "Mozambique" (2003), "Tambor mineiro" (2006), "Rosário embolado" (2008), "No mercado" (2010), "Galanga Chico Rei" (2015) e “Maurício Tizumba Canta Vander Lee” (2016).

Paralelamente à carreira musical, estudou teatro na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Como ator, participou da criação da Cia. Burlantins - grupo que hoje dirige - atuou em 28 espetáculos, sendo 25 musicais; e fez trabalhos também em cinema e TV.





É ele o idealizador da Mostra Benjamin de Oliveira e do Espaço Cultural Tambor Mineiro. Hoje, roda o país com performances artísticas que estabelecem diálogo entre as diversas manifestações populares tradicionais da cultura afro-brasileira e afro-mineira. Somente nas últimas semanas, esteve em Salvador, Tiradentes, Rio de Janeiro, São Paulo e Manaus.

Saga

“Heranças” é uma forma de comemorar essa trajetória. “Foi uma saga montar este espetáculo. Era para ter saído antes, mas, com essa coisa da pandemia, o bicho pegou para a gente e não deu para concluir no tempo que pretendíamos”, comenta Tizumba. A ideia inicial era estrear o espetáculo no final do ano passado.

Com direção de Grace Passô, a peça nasceu a partir do livro “De Camarões: Veredas de Mauricio Tizumba”, de Pedro Kalil e Elias Gibran. “Depois que escreveu esse livro, bateu na cabeça do Pedro a ideia de fazer algo que se chamasse ‘herança’ para falar justamente sobre essa herança que a gente recebe da África. (No meu caso), que eu recebo dos meus ancestrais, meus pretos velhos, tios e avós”, ressalta.





Tizumba gostou da ideia. Reuniu a filha Júlia e o amigo Pererê, ambos da Cia. Burlantins, e chamou Grace para dirigir. A partir de memórias que fossem marcantes para cada um deles, Grace - com o apoio de Aline Vila Real e Tomás Sarquis - escreveu o texto de "Herança".

“O nascedouro das histórias é a vida real deles. A partir daí, a gente foi ficcionalizando, encantando e recriando as histórias, dando dimensões políticas e sociais para elas”, explica Grace.

Estão na peça, por exemplos, as relações de Tizumba, Júlia e Pererê com as religiões de matriz africana, o reinado, o teatro negro e a música. 

A questão da negritude - bandeira defendida por Tizumba há pelo menos 40 anos -, no entanto, é o tema central e o elo comum dessas histórias.





“Tem hora que parece que foi o PT (Partido dos Trabalhadores) que descobriu a negritude. Mas, não. Isso vem de muito antes. Se formos considerar só o teatro negro, começa com Abdias do Nascimento, em 1945. E, certamente, antes dele já tinha alguém fazendo isso também. É uma questão que já estamos abordando há anos no intuito de ‘desapagar’ nossa história, apagada pelos brancos”, ressalta.

Esse movimento contrário ao apagamento que Tizumba desenvolve tem surtido efeito, e “Heranças” é uma prova disso. “O povo negro é um povo vencedor. Nós contamos histórias de um povo vencedor”, afirma o artista. 

“Eu vivo em Belo Horizonte, uma cidade super racista, mas vejo que a gente continua vencendo aqui dentro. Vejo que o meu povo mais pobre, por exemplo, está caminhando para melhorar de vida. Isso é muito gratificante”, diz.

“HERANÇA”
• Texto: Grace Passô, Aline Vila Real e Tomás Sarquis. Direção: Grace Passô. Com: Maurício Tizumba, Júlia Tizumba e Sérgio Pererê.
• Nesta sexta-feira (24/3) e sábado, às 20h; domingo, às 19h.
• No teatro do Centro Cultural Unimed-BH Minas (R. da Bahia, 2.244, Lourdes). • Ingressos à venda por R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia), na bilheteria do teatro ou pelo site Eventim

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