'Yoko tem uma participação que não é ilustrativa. Nós três assinamos a maioria das composições, e mesmo aquelas em que um ou outro não participou diretamente da criação estão impregnadas pelas trocas dessa convivência familiar. Além do violoncelo, Yoko marca presença também com teclados adicionais e cantando'
Bruno Verner, músico
Há quase 30 anos transitando por diferentes ambientes sonoros, do pós-punk ao funk carioca, o Tetine, formado pelo casal Bruno Verner e Eliete Mejorado, acaba de lançar um trabalho com o qual, ao mesmo tempo, experimenta nova fase e revê a própria trajetória. Batizado “After the future”, o recém-lançado disco marca o debute da nova formação – o duo passou a ser trio com a incorporação de Yoko Afi, filha do casal.
Ao longo das 11 faixas, o que se ouve é um híbrido de música eletrônica e música de câmara, o que, segundo Verner, resulta numa sonoridade melancólica e lisérgica. O músico – que é mineiro e militou no underground de Belo Horizonte integrando diversos projetos nos anos 1980, antes de se mudar para São Paulo, onde conheceu Eliete – explica que “After de future” é fruto direto da pandemia.
Morando em Londres desde 2000, a família, isolada em seu apartamento no Leste da capital britânica, começou a experimentar a fusão de instrumentos acústicos e eletrônicos. O violoncelo tocado por Yoko foi determinante para os rumos que levaram ao novo álbum, segundo Verner.
Ele diz que um primeiro resultado dessas experiências foi “The ether”, filme-performance de 25 minutos feito com a chegada da pandemia e com a trilha sonora toda composta a partir do violoncelo e de beats e ambiências eletrônicas.
“A partir daí, começamos a trabalhar nas músicas que estão no ‘After the future’, um processo que culminou com a gravação, entre junho e setembro do ano passado, num estúdio caseiro, montado perto da cozinha”, diz.
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Diálogo com o passado
Se por um lado o novo álbum é atravessado por diversos novos elementos e mesmo pelas circunstâncias em que foi feito, por outro estabelece um diálogo direto com tudo o que o Tetine já fez, segundo o artista. Ele aponta que é um disco “totalmente diferente”, mas coerente em relação a como as ideias foram se desenvolvendo ao longo dos anos – funciona, assim, como um complemento.
“Pensando no conjunto das músicas, ‘After the future’ foi uma forma de a gente rever trabalhos antigos do Tetine, quase que como uma canibalização própria, porque a gente voltou ali no começo dessa história, em 1995, quando nosso trabalho era extremamente experimental, passando por lugares que estavam adormecidos e que a gente foi acordando, entendendo coisas que a gente fez no início da carreira”, diz.
1Falamos de capitalismo digital, de como as coisas funcionam numa sociedade como a de hoje, um lugar onde nos sentimos um organismo estranho, com o Tetine sendo um objeto não identificado como grupo'
Bruno Verner, músico
Organismo estranho
Em termos conceituais e temáticos, Bruno Verner observa que, a despeito do nome, é um disco alinhado com o tempo presente. “Falamos de capitalismo digital, de como as coisas funcionam numa sociedade como a de hoje, um lugar onde nos sentimos um organismo estranho, com o Tetine sendo um objeto não identificado como grupo”, salienta.
“After the future” é o 21º título da discografia do Tetine e segue mantendo o duo – agora trio – na seara independente que trilha desde que foi criado. “Nesse sentido, é um trabalho que segue a linha do que sempre fomos, meio que nadando contra a corrente do pop comercial, ainda pensando a obra como um todo, como um álbum que contém uma narrativa, que conta uma história”, destaca.
Ele credita essa caraterística à sua própria formação e à de Eliete, já que, além da música, os dois sempre transitaram pelo campo do audiovisual e das artes plásticas. “A gente faz música, mas, na verdade, também tem o desejo de fazer cinema pela música, de tê-la como veículo para outras formas de expressão”, pontua.
Presença de Yoko
Toda essa conceituação, os caminhos que “After the future” percorre e os elementos que o embasam reverberam, de alguma forma, a presença de Yoko, atualmente com 13 anos, no trabalho. Verner conta que ela toca instrumentos desde criança, tem o envolvimento com a música no DNA e, de um tempo para cá, “começou a fazer suas próprias coisas”.
Ele pontua que, com o isolamento da família imposto pela pandemia, o que ocorreu foi um amálgama natural. “Ficamos quase dois anos os três em casa, então, inevitavelmente ela entrou para o grupo”, diz. O instrumento em que Yoko vinha se especializando era o violoncelo e, assim, ele acabou não só absorvido como deu boa parte do direcionamento na produção das músicas reunidas em “After the future”.
“Quando começamos a compor, já estávamos íntimos musicalmente. Com a presença do violoncelo, começamos a fazer uma espécie de ‘do it yourself’ de música de câmara, o que era novo para a gente – e é uma presença fundamental, muitas músicas surgiram das linhas melódicas que Yoko fez no violoncelo. É um disco que reflete a atmosfera do que a gente viveu nos últimos três anos, com a pandemia e com a saída dela, os reflexos disso”, aponta.
Virada de chave
Uma parte do repertório é puramente instrumental ou conta apenas com alguns vocalizes. As músicas que têm letras tratam de assuntos como envelhecimento, morte, opressão, menopausa, imigração, poluição, futuros e não-futuros possíveis. “São canções que surgiram muito a partir dessa quebra que deu no mundo, essa virada de chave que aconteceu entre 2020 e 2022.”
Verner chama a atenção para o fato de que, de uma forma ou de outra, todas as faixas de “After the future” foram compostas a seis mãos. “Yoko tem uma participação que não é ilustrativa. Nós três assinamos a maioria das composições, e mesmo aquelas em que um ou outro não participou diretamente da criação estão impregnadas pelas trocas dessa convivência familiar. Além do violoncelo, Yoko marca presença também com teclados adicionais e cantando”, afirma.
A incorporação da filha de 13 anos no projeto musical que está em curso há 28 foi um “movimento encantador”, segundo Verner. Ele diz ter entendido questões musicais suas, muito subjetivas, através de uma outra pessoa. “A forma como ela se acoplou ao Tetine foi algo muito belo, parecia que ela estava ali desde sempre. Foi uma sensação muito boa, cristalizou uma comunicação musical muito bacana entre a gente”, conta.
Diversas referências
Instado a pontuar as principais características de “After the future”, ele costura diversas referências. Nas palavras de Verner, faixas minimalistas e atmosféricas como “And still the Earth”, “Music for breathing”, “Inverno” e “Always at war” convivem em diálogo com trip hop, rap, palavras faladas atonais e batidas lisérgicas de faixas como “After the future (Eldorado a vapor)”, “Spaced out in paradise”, “No fim da história” e “Disorder of desire”.
“A gente fez um disco de câmara, mas ao mesmo tempo com pegada eletrônica. Acho que a singularidade é essa. O primeiro single, ‘Spaced out in paradise’, sintetiza um pouco o álbum, tem uma sonoridade atmosférica, viajante, bem melancólica, mas com um componente psicodélico que te leva, te abre perspectivas, e isso pode ser tanto luminoso em algumas passagens quanto bem escuro em outras”, diz.
Segundo Verner, “After the future” remete ao início da história do Tetine, mas, na verdade, retrocede ainda mais. O repertório inclui uma faixa – “Três tristes tigres (Circe em paz)” – que ele compôs com o poeta Marcelo Dolabela (1957-2020) quando integravam o Divergência Socialista, lendário grupo do underground de Belo Horizonte criado nos anos 1980 e que foi o embrião de diversas outras bandas que viriam a surgir posteriormente.
Sintonia com o agora
“Estive no Divergência entre 1988 e 1990 e compus essa música com Marcelo logo que entrei. Na época, a gente nem chegou a gravar, mas ela sempre ficou na minha cabeça. Agora, no processo de ‘After the future’, pensei que ela tinha tudo a ver com o que a gente estava falando. Apesar de ser de 1988, é uma letra em sintonia com o nosso discurso de agora”, diz.
Ele observa, a propósito, que tem estado às voltas com ações que envolvem seu antigo grupo. Há cerca de cinco meses foi lançado um songbook do Divergência Socialista – capitaneado por Aleca de Alexandria, musicista que integrou uma das diversas formações da banda –, do qual participou da produção. “Teve uma reunião do pessoal e agora estamos em contato de novo”, diz.
O songbook, que pode ser baixado no site do grupo, traz gravações de músicas originalmente agrupadas em trabalhos lançados em fita cassete – “Christine Keeler”, de 1986, e “Lilith Lunaire”, de 1990 – e em CDs – “Cacograma”, de 2001, e “Substância”, de 2013 –, além de gravações de shows feitas ao vivo também em fitas cassete.
Música regravada
Antes de se envolver com o songbook, Verner já havia revisitado o passado em outra ocasião. Em 2020, com a morte de Marcelo Dolabela, um mês antes da chegada da pandemia, ele também regravou, com a filha, a faixa-título da fita cassete “Lilith Lunaire”, que compôs com o poeta. “Eu e Yoko fizemos esse registro em abril daquele ano. É interessante como essas histórias da pré-pandemia e da pós-pandemia se conectam”, observa.
Agora, com “After the future” no mundo, ele diz que o desejo da família é pegar a estrada. “É um disco de que estamos extremamente orgulhosos. No texto de apresentação, pego a expressão ‘ágil e ingênuo como uma criança’, de Oswald de Andrade, para me referir a esse trabalho, e digo também que ele traz a ‘arrogância de uma segunda infância’, frase do (cineasta britânico) Derek Jarman, o que tem a ver com você fazer com todas as suas possibilidades”, destaca.
“AFTER THE FUTURE”
• Álbum de Tetine
• Slum Dunk Music
• 11 faixas
• Disponível nas principais plataformas
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