O isolamento imposto pela pandemia e o fato de passar parte do seu tempo no Uruguai, onde fixou residência em 2016, despertaram em Cao Guimarães saudades de trabalhar no sertão mineiro – ambiente em que ele realizou os celebrados documentários “A alma do osso” (2004) e “Andarilho” (2006). Resulta desse sentimento – e de uma dose de acaso –, o novo filme do cineasta e artista plástico, “Santino”,  estreia na programação do festival É Tudo Verdade.





O longa terá sua primeira exibição no próximo dia 19/4, no Rio de Janeiro, com outras três sessões incluídas na mostra competitiva nacional do festival, que tem início na próxima quinta-feira (13/4), na capital fluminense e em São Paulo. As bases para que o cineasta pudesse matar as saudades de filmar no sertão começaram com conversas com o cantor, compositor e escritor Makely Ka.

De bike pelas veredas

Entre julho e setembro de 2012, Makely percorreu, de bicicleta, as veredas do “Grande sertão” de Guimarães Rosa, seguindo os passos dos personagens do livro clássico. Essa sua experiência serviu de farol para a reconexão que o cineasta buscava. Ele conta que chamou o músico e também Damiana Campos, moradora da Norte de Minas, que trabalha no sertão – e assina como produtora do filme – para que fizessem uma prospecção de personagens.
 
“Nós nos reunimos sem saber exatamente o que seria, mas orientados por esse meu desejo de abordar um personagem sertanejo, o que eu não fazia desde ‘Andarilho’. Makely foi quem comentou sobre Santino Lopes Araújo, uma figura muito interessante, veredeiro, morador de uma localidade próxima a Bonito de Minas, na bacia do São Francisco, quase na divisa com Bahia. Fomos para lá meio sem saber que filme seria esse”, recorda Guimarães.




 
Ele conta que sua ideia inicial era fazer um documentário sobre relações amorosas separadas por um rio, e que a viagem serviria de investigação para esse mote. Ao conhecer e conviver por alguns dias com Santino, no entanto, entendeu que o documentário que queria fazer estava ali, debaixo de suas barbas, como diz.
 

Santino, zelador de cemitério, imagina como adiar a data do fim do mundo

(foto: Divulgação)
 

“Santino tem uma complexidade fantástica. Os planos eram outros, mas falei para a equipe, que era bem reduzida, que íamos continuar ali. O filme foi se fazendo durante o período de mais ou menos 10 dias em que estivemos convivendo com Santino”, diz. Ele destaca que todo o processo foi muito rápido, tanto as filmagens, durante o inverno do ano passado, quanto a edição – um “parto natural”, conforme aponta.

“Foi tudo muito fácil e muito gostoso, e atendeu a esse meu desejo de voltar para o sertão, de fazer personagens desse interior profundo, essas figuras quase que em extinção no Brasil, mas muito expressivas, com uma oralidade forte e uma carga de conhecimento incrível vinculada à terra, às tradições locais”, ressalta.




 
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Ativista incansável

A sinopse do documentário indica que, “para além de ser um ativista incansável na defesa deste bioma muito ameaçado pelos predadores do grande capital, Santino consegue unir de forma sugestiva o mundo espiritual e místico ao qual está vinculado, o mundo da natureza e dos animais com os quais confabula e o mundo do ativismo político e da conscientização das novas gerações para a importância da preservação da natureza”.

Guimarães diz que a relação “impressionante” que Santino tem com o mundo real e com o mundo transcendental – ele conversa com entidades, espíritos e animais – é o que faz dele uma presença poderosa enquanto personagem. “Ele tem um lado misterioso, oculto, fabuloso, e é, ao mesmo tempo, altamente politizado, vinculado com a realidade das coisas; cuida daquele ambiente, daquele bioma que é muito machucado”, aponta.

Enquanto guia o cineasta pelos caminhos do cerrado, Santino mostra plantas e árvores, falando dos benefícios que trazem para o corpo e para a alma, estabelecendo relações entre a fauna e a flora, numa dinâmica em que crendices e saberes tradicionais andam de mãos dadas. Mesmo para a família – a esposa e as três filhas –, o universo do veredeiro é, por vezes, difícil de penetrar, o que, segundo o cineasta, gera uma dramaticidade interessante para o filme.






Mistério em aberto

Guimarães chama a atenção para a forma genuína com que Santino se relaciona com o mundo espiritual, da transcendência. “Não é uma crença comprada, como no caso de algumas igrejas evangélicas, em que os pastores vendem um lugar no céu. Ele tira aquilo em que acredita de sua relação com a terra, das tradições do local. São vozes que a gente não conhece. Eu deixo esse mistério em aberto, respeitando o personagem”, aponta.
 

Santino tem o dom de conversar com entidades, espíritos e animais

(foto: Divulgação)
 

O diretor vê uma relação entre o imaginário de Santino e o próprio fazer artístico. “Você não sabe como a obra de arte ‘baixa’, como ela vem; a gente é um cavalo de santo, da mesma forma que ele é, sem ter uma religião específica. Ele sustenta um diálogo entre dois mundos e aplica isso muito bem, sem ser doutrinário. Santino consegue organizar o tempo, a vida e o além da vida em que ele acredita de forma muito saudável”, diz.

O cineasta destaca, também, a autossuficiência do sertanejo, que seu personagem espelha, na medida em que mantém um depósito de tralhas a partir das quais produz gambiarras e inventa máquinas que auxiliam na lida diária. Ele observa que Santino consegue, por exemplo, consertar um trator enquanto filosofa sobre a possibilidade de adiar a data do fim do mundo.




Carneiros hidráulicos

“Ele tem essa fé na possibilidade de salvar o mundo muito vinculada a um problema urgente da humanidade, que é nossa relação com a natureza”, diz, destacando que, ao mesmo tempo, Santino é de uma praticidade muito efetiva – entre outras manufaturas, ele fabrica bombas d’água, os chamados carneiros hidráulicos, que atendem a vários moradores da região.

O fato de a energia elétrica ter chegado há pouco tempo na vereda em que o personagem do documentário mora foi um dos fatores que motivou as escolhas de Guimarães. Tratava-se, conforme aponta, de uma região mergulhada na oralidade, porque não havia televisão, internet, nada. “Pensar o contraste disso com o ChatGPT é uma loucura. Tem esses extremos radicais, o mundo sem energia elétrica convivendo com o mundo da inteligência artificial”, diz.

O mistério é um dos ingredientes que se destaca no documentário, não apenas pelas crenças de Santino; ele também está presente no aspecto formal da obra. A primeira cena mostra o personagem-título em um cemitério, do qual ele é uma espécie de zelador. Em várias passagens, as veredas “mortas” – mostradas em oposição ao viço do terreno muito irrigado em que Santino mora – têm algo de fantasmagórico.




 

'A ruína tem sua beleza, mas ela é efêmera; muito mais importante é a beleza da vereda viva', afirma o cineasta Cao Guimarães

(foto: Florencia Martinez/divulgação)
 

Tristeza e plasticidade

“A ruína sempre me fascinou enquanto cineasta e fotógrafo. A vereda morta, com uma luz de fim de tarde, é de uma tristeza e de uma plasticidade enormes. É algo que gera mesmo uma coisa meio espectral, e é proposital, no sentido de mostrar os opostos, mostrar o que a gente ainda pode preservar. A ruína tem sua beleza, mas ela é efêmera; muito mais importante é a beleza da vereda viva”, pontua o cineasta.

Ele reitera que “Santino” é quase uma volta aos trabalhos realizados nos anos 2000, “A alma do osso” e “Andarilho” – um tipo de imersão que considera muito prazerosa. “Você viaja e deixa o filme vir até você, isso dá uma liberdade enorme. A estrutura do filme vai aparecendo durante as filmagens, prescinde de um roteiro, que, às vezes, é uma amarra. No caso do documentário, é especialmente apropriado, porque a realidade é muito escorregadia”, diz.

Desde aqueles dois filmes dos anos 2000 ambientados no sertão, Guimarães produziu duas ficções – “Ex-Isto” (2010) e “O homem das multidões” (2013) –, um filme que classifica como muito subjetivo, “Otto” (2012), sobre a gestação e o nascimento de seu filho, e uma obra “meio abstrata”, em suas palavras, que é “Espera” (2018).






Presença no festival

Com parte considerável de sua filmografia em longa-metragem, que tem início com “O fim do sem fim” (2001), Guimarães esteve presente em edições pregressas do festival É Tudo Verdade. Ele pontua que, com seu longa inaugural, ganhou prêmio na extinta categoria Renovação de Linguagem. Em 2004, com “A alma do osso”, foi vencedor nas competições nacional e internacional do festival.

Em 2005, o filme “Da janela do meu quarto” ganhou como melhor curta. O cineasta voltou a participar da contenda com “Ex-Isto”, que não chegou a ser premiado. “O É Tudo Verdade é dos festivais de que mais participei na vida. Estou presente agora pela quinta vez. Outros filmes que fiz, mandei para outros festivais, porque não dá para ficar o tempo inteiro apostando em um só, mas o É Tudo Verdade é uma janela muito importante”, afirma Guimarães.

Ele considera que as obras que integram a mostra competitiva do festival têm, todas, grande potencial para reverberar internacionalmente. “O documentário brasileiro ficou muito potente ao longo das últimas duas décadas, desde que Eduardo Coutinho voltou a filmar; é das grandes forças cinematográficas que se firmaram a partir dos anos 2000. E o É Tudo Verdade é a vitrine mais importante para esse tipo de produção”, avalia.




Filmes de Minas

Dos sete filmes incluídos na mostra competitiva nacional da edição deste ano, três são de realizadores mineiros – “Santino” figura nessa lista ao lado de “171”, de Rodrigo Siqueira, e “Amanhã”, de Marcos Pimentel. Guimarães considera que Minas Gerais desenvolveu, a partir de suas paisagens humanas e geográficas, uma maneira peculiar de fazer cinema.

“É um estado interessante, porque, ao mesmo tempo em que é uma síntese do Brasil, tem uma coisa que é muito para dentro, é ‘onde o oculto do mistério se escondeu’, como diz Caetano. Tem uma frase de que gosto muito: ‘O mineiro é aquele que pensa duas vezes antes de não falar nada’. Para o meu cinema, isso é muito interessante. Gosto do mistério do não dito”, destaca.

Ele também atribui a singularidade da produção audiovisual mineira ao fato de o estado estar na “periferia” do Sudeste, desconectado do eixo Rio-São Paulo. “Começamos a fazer filmes de uma forma diferente, investindo em linguagens novas. Foi-se criando um ambiente fértil para um tipo de produção que não está e nem pretende estar na esfera industrial do cinema e, quanto mais artesanal, mais livre você está das amarras do dinheiro”, pontua.

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