Certa vez, um programa de rádio de uma grande emissora de Belo Horizonte discutia a importância da leitura e do incentivo ao hábito de ler ainda na infância, quando um ouvinte mandou uma mensagem dizendo com orgulho que “detestava ler” e que sequer havia terminado um livro.
A ele somaram-se outros ouvintes, mandando mensagens similares, fazendo os apresentadores do programa se assustarem com a quantidade de gente que não gostava de ler.
Não é de se admirar, contudo, que discursos como esse sejam comuns. Afinal, quase metade da população brasileira (48%) é de “não leitores”, de acordo com a última edição da pesquisa "Retratos da leitura no Brasil”, divulgada em 2020.
As mensagens dos ouvintes, no entanto, apenas mostram o quanto o Brasil - tanto o poder público quanto as próprias famílias - vem falhando no estímulo à formação de leitores.
Essa lacuna ocorre já na primeira infância, precisamente o período em que há maior interesse pela leitura - 88% das crianças e jovens entre 5 e 13 anos lêem por gosto, e não por obrigação.
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Pois foi pensando nisso que a professora e contadora de histórias Juliana Daher, junto com a pesquisadora e escritora Carolina Fedatto idealizou o Seminário Poéticas da Infância, que será realizado desta quarta-feira (12/4) a sábado, com atividades na Faculdade de Educação da UFMG, no Centro de Referência da Cultura Popular e Tradicional Lagoa do Nado e no Centro Cultural de Usina de Cultura.
A gente trabalha muito com o conceito de 'Triângulo amoroso', que é a experiência de o adulto ler para a criança. Assim, temos uma circulação de afeto que passa pelo adulto, pela criança e pelo livro
Juliana Daher, professora e contadora de histórias
Bebês
“Quando falamos de leitura na primeira infância, é necessário termos em mente que a leitura vai além da compreensão alfabética. O bebê vai tocar no livro, vai colocar na boca, morder. E é assim que ele já vai se familiarizando e tomando gosto pelo objeto. É preciso oferecer a ele essa experiência com maior constância”, explica Juliana.Exatamente por isso, o seminário contará com mesas como “Vivências literárias para os bebês de colo, engatinhantes e andantes”, além de oficinas como "Narrativas de ninar", "Arte narrativa e primeira infância" e "Madres, padres, bebes y libros construyendo intersubjetividad". Esta última com a pedagoga, escritora e editora argentina especialista em educação e literatura infantil María Emilia López.
Haverá ainda na Faculdade de Educação uma bebeteca, espécie de biblioteca especializada no atendimento à primeira infância.
“A gente trabalha muito com o conceito de 'Triângulo amoroso’, que é a experiência de o adulto ler para a criança. Assim, temos uma circulação de afeto que passa pelo adulto, pela criança e pelo livro”, diz Juliana.
Uma das maiores preocupações do evento é deixar claro que as crianças, mesmo antes da alfabetização, também devem ter respeitado o direito ao simbólico, que tem na literatura uma de suas formas.
Segundo Juliana, o indivíduo que já está familiarizado com a leitura desde a primeira infância tende a ser mais imaginativo e, quando chega no Ensino Fundamental, tem um processo de alfabetização mais natural e orgânico.
Logo, é natural que temas como "O direito ao simbólico e ao imaginário” e "As imagens narrativas nos bosques da ficção" tomem conta das mesas-redondas ao longo dos dias do evento.
A abertura do seminário, inclusive, será com o bate-papo “Poéticas da infância” com a participação de María Emilia López e mediação da professora da FaE/UFMG Mônica Correia Baptista.
Desmonte
“Eu circulo muito por esse território da literatura infantil e reconheço que ele é muito circunscrito. Além disso, nos últimos quatros anos, houve um desmonte muito grande nas políticas de fomento à leitura na primeira infância”, afirma Juliana, citando a campanha “Conta pra mim”, do Ministério da Educação (MEC).Lançada pela pasta em 2019, a iniciativa tinha o objetivo de incentivar o hábito da leitura entre pais e filhos. Por meio de um site criado exclusivamente para a campanha, eram oferecidos gratuitamente títulos infantis em versões digitais e no formato de audiobook.
Contudo, o “Conta pra mim” não foi muito bem aceito por profissionais e especialistas da área, que fizeram até um abaixo-assinado dizendo que o modelo representava um retrocesso nas políticas públicas do livro e da leitura no país.
“Era um projeto focado apenas na alfabetização e que queria passar ‘bons valores’ para as crianças. Para isso, várias histórias - muitas delas fábulas bem conhecidas - foram alteradas para terem um desfecho menos trágico”, comenta Juliana.
Uma das histórias que sofreu essa interferência da pasta foi o clássico “João e Maria”, dos Irmãos Grimm.
Não que o conto já não tivesse ganhado múltiplas versões ao longo dos anos. Contudo, na edição do MEC, a madrasta dos meninos, que sugere ao pai que os abandone por causa da enorme pobreza em casa, é substituída por uma mãe boa e cuidadosa, que orienta sempre os filhos a espalharem pedrinhas pelo caminho quando forem brincar fora de casa.
“Assim, não haverá perigo de vocês se perderem. Vão com Deus!”, diz a mulher, no início da história.
João e Maria se perdem por acaso. Há toda a trama da bruxa má que atrai os meninos com sua casa feita de doces, a fim de devorá-los depois. Mas, ao final, quando os irmãos retornam para a casa, encontram os pais, “na cozinha, chorando e rezando pelos filhos, que se perderam”.
“Isso é um absurdo, porque a arte serve para subverter a realidade”, protesta Juliana. “Se a gente não tem a fantasia, o que vai ter para aguçar a criatividade e o senso crítico das pessoas?”, indaga.
A professora, contudo, tem esperança de que o cenário dos próximos anos seja melhor. Vê com bons olhos a recriação do Ministério da Cultura e, consequentemente, a formação da Secretaria do Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas.
“A promoção da leitura, sobretudo na primeira infância, é um debate que tem que ser feito com as famílias, mas também deve haver participação do poder público”, diz.
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Confira a programação do evento
» Quarta-feira (12/4)
• 18h – Recepção e inscrições
• 19h – Mesa de abertura
• 19h40h às 21h – Conferência de abertura –”Poéticas da Infância” com María Emilia López (UBA), mediação: Profa. Dra. Mônica Correia Baptista (FaE/UFMG)
Local: Auditório Neidson Rodrigues – FAE/UFMG
» Quinta-feira (13/4)
• 9h às 11h - MESA - “O direito ao simbólico e ao imaginário” com Erika Parlato (Instituto Langage) e Edith Derdyk (artista-ilustradora), mediação: Carolina Fedatto
• 14h às 16h – Oficinas simultâneas nos três locais em que o evento é realizado
• 19h às 21h - Mesa 2 - “O livro e a literatura para as infâncias” com Daniela Padilha (Editora Jujuba) e Mariana Parreira (UFMG), mediação: Camila Petrovitch
Local: Auditório Neidson Rodrigues – FAE/UFMG
» Sexta-feira (14/4)
• 9h às 11h – Mesa 3: “A experiência da leitura na primeira infância” com Cássia Bittens (PUC-SP/Literatura de berço) e Rosinha (ilustradora), mediação: Fabíola Farias
Local: Auditório Neidson Rodrigues – FAE/UFMG
• 14h às 16h – Bate-papo: Literatura ilustrada com prosa – Odilon Moraes (ilustrador); Amma Fonseca (ilustradora), Carol Fernandes (ilustradora), mediação: Carolina Moreyra (escritora)
• 17h às 19h – Conferência de encerramento: “As imagens narrativas nos bosques da ficção”, com Marilda Castanha (escritora/ilustradora), mediação: Juliana Daher
• 19h às 21h - Lançamento de livros
Local: Auditório Neidson Rodrigues – FAE/UFMG
» Sábado (15/4)
VIVÊNCIAS LITERÁRIAS/CENTRO CULTURAL USINA DE CULTURA
• 9h30 (bebês de colo), 10h (bebês engatinhantes) e 10h30 (bebês andantes) – Leituras e afetos na primeira infância, com Cássia Bittens
• 11h – Histórias de contar, cantar e brincar, com Cia Pé de Moleque
VIVÊNCIAS LITERÁRIAS/CRCP LAGOA DO NADO
• 10h às 12h (contínua) Ninho de leitura, com Cia Mafagafos
• 10h (da barriga aos 12 meses) e 11h (dos 13 meses aos 30 meses) - “Manoel de Barros para bebês: encontro nas miudezas”, com Vivan Catenacci
Oficinas do dia 13/4 - Participação gratuita mediante inscrições por ordem de chegada, 30 minutos antes das atividades
CENTRO CULTURAL USINA DE CULTURA:
Oficina 1: Tertúlia Literária, Bebeteca – Local: Biblioteca
Oficina 2: Nana Neném, Bebeteca – Local: Sala de reuniões
Oficina 3: Ilustração com Coisas, Bruna Lubambo – Local: Galpão
CRCP LAGOA DO NADO
Oficina 4: OQTNB, Bebeteca
Oficina 5: Qualidade e bibliodiversidade na composição de acervos, Prollei/Bebeteca
Oficina 6: Livros à mão: confecção de livros com dobras, Aline Maciel e Sig Schaitel (Cia. Mafagafos)
FAE/UFMG
Oficina 7: Arte narrativa e primeira infância, Juliana Daher
Oficina 8: Narrativas de ninar, Rosinha
Oficina 9: Madres, padres, bebes y libros construyendo intersubjetividad, María Emilia López
SEMINÁRIO POÉTICAS DA INFÂNCIA
Desta quarta-feira (12/4) a sábado (15/4). Com mesas-redondas e oficinas na Faculdade de Educação da UFMG (Av. Presidente Antônio Carlos, 6.627, Pampulha), no Centro de Referência da Cultura Popular e Tradicional Lagoa do Nado (R. Ministro Hermenegildo de Barros, 904, Itapoã) e no Centro Cultural de Usina de Cultura (Rua Dom Cabral, 765 - Ipiranga). Entrada franca. Mais informações pelo Instagram: @seminariopoeticasdainfancia.
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