Na literatura, a canoa tem forte simbologia: está ligada à existência. É ela que permite o trânsito entre as margens da vida, do nascer ao morrer.

Não à toa, os barquinhos povoam, além de rios, os sonhos de muita gente. E foi por muito tempo que uma pequena e simples embarcação povoou o imaginário da atriz Inês Peixoto. “Constantemente me vinha a imagem de uma mulher dentro de uma canoa”, revela.




 
Ela bem que tentou afugentar tal imagem. Contudo, depois de certo tempo, percebeu que a canoa poderia ser o elemento cênico necessário para “Órfãs de dinheiro”, monólogo que, à época, estava escrevendo.

A peça estreou em agosto de 2019, com direção do colega do Grupo Galpão, Eduardo Moreira. O espetáculo seguiu em cartaz no ano seguinte e teve de ser suspenso por causa da pandemia.

Agora, a atriz volta com o monólogo, que cumpre temporada de hoje (15/4) a 7 de maio, em cinco diferentes espaços culturais de Belo Horizonte: Zap 18, Teatro Espanca, Usina de Cultura, Teatro 171 e Centro Cultural Vila Santa Rita.

Violência onipresente

Na peça, Inês dá vida a três personagens em condição de vulnerabilidade social. A primeira é uma mulher vendida à exploração sexual ainda criança; a outra é uma refugiada que luta pela própria sobrevivência e a de seu bebê; e, por fim,  uma empregada doméstica sonhadora.





 

Embora tenham origens e histórias diferentes, a violência que sofrem e a relação de subordinação aos homens é o que une as três.

“São questões que estão em bases de um passado longínquo, mas que, lamentavelmente, continuam presentes”, observa Inês.

A peça não procura trazer soluções, e sim “abrir os olhos das mulheres, falar para elas alcançarem sua independência econômica, o ideal de um trabalho, de uma profissão, para que tenham autossustentação”, emenda a atriz.

É dentro da canoa que as personagens contam suas histórias e seus tormentos. Ao longo de uma espécie de travessia existencial, elas contam suas experiências como vítimas de explorações e violências.




 
A primeira delas, por exemplo, foi vendida aos 12 anos para uma comunidade de garimpeiros. Lá, era submetida aos mais cruéis abusos morais e, sobretudo, sexuais.

A segunda, tenta abandonar seu país junto com seu bebê em decorrência do acirramento dos conflitos sociopolíticos. Contudo, encontra-se em um posto de fronteira à mercê da caridade alheia.

Por fim, a empregada doméstica, que toma consciência de que as condições nas quais trabalha são análogas à escravidão.

“A canoa se ressignifica o tempo todo”, ressalta Inês. "Em alguns momentos, eu saio dela, e até ando ao redor dela, mas tudo está ali. É aquele universo da canoa", comenta lembrando da relação do objeto cênico com a existência de cada uma das personagens.
 
• Leia também: Grupo Galpão vai estrear espetáculo elaborado em parceria com Cida Moreira

Longe da bolha

Inês quis abordar a exploração e a relação de dependência depois que entendeu que vivia numa bolha, e que, para além dessa bolha, existem inúmeras meninas e mulheres extremamente dependentes de homens – primeiro do pai e depois do marido.



“Elas perdem o poder de escolha, né? A partir de uma construção sociopolítica, colocaram como o lugar da mulher a casa e a cozinha, não dando espaço para ela pensar em ter uma vida independente. A gente vê isso em realidades muito próximas, meninas com 12, 13 anos já sabem que vão começar a ter filhos, vão ficar dependentes de um marido que, muito provavelmente, vai bater nelas e que não vão sair desse ciclo de violência”, afirma.

Por isso, defende a atriz, são necessárias políticas educacionais e sociais que orientem as mulheres a terem independência econômica para que possam escolher os melhores caminhos para suas vidas.

“É lógico que a gente aborda isso de maneira mais lúdica, porque estamos nesse terreno mágico do teatro. Estou ali utilizando a minha imaginação. São histórias que a gente ri, que a gente chora e que a gente pensa. E elas estão ali para fazer as pessoas refletirem e enfrentarem todas essas questões”, diz.
 
 

Faulkner, Rosa e Rulfo

Inês começou a escrever “Órfãs de dinheiro” a partir da leitura do livro “Modernismo localista das Américas”, de Paulo Moreira.



Na obra, Moreira analisa contos de William Faulkner (1897-1962), Guimarães Rosa (1908-1967) e Juan Rulfo (1917-1986), com protagonistas femininas em vulnerabilidade devido à situação econômica. 

Com a peça, Inês ganhou o Prêmio APCA 2022 de melhor atriz de teatro.

Além de seguir em cartaz com a temporada de “Órfãs de dinheiro”, a atriz está no elenco dos filmes “O lodo”, de Helvécio Ratton (em cartaz no Cine UNA Belas Artes, Unimed-BH Minas e nos cinemas da Rede Cineart), e “As órfãs da rainha”, de Elza Cataldo (com estreia no mês que vem). E ainda participa da concepção de nova montagem do Grupo Galpão, ainda sem nome, mas com estreia prevista para junho.
 

“ÓRFÃS DE DINHEIRO”

• Texto e atuação: Inês Peixoto. Direção: Eduardo Moreira.
• Neste sábado e domingo (15 e 16/4), às 19h, no Zap 18 (Rua João Donada, 18, Santa Terezinha).



• Ingressos à venda por R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia) na bilheteria do teatro ou pelo site do Sympla.
 
 

PROGRAMAÇÃO


>> 22 e 23 de abril (sáb. e dom., 19h)
Teatro Espanca (Rua Aarão Reis,542, Centro)
• Ingressos à venda na bilheteria do teatro ou no site do Sympla. Em 22 de abril, espetáculo com acessibilidade em libras e bate-papo apósa apresentação.
 
>> 28 de abril (sex., 19h)
Usina de Cultura – Centro Cultural (Rua Dom Cabral, 765, Ipiranga)
• Entrada franca, limitada à lotação do espaço. Bate-papo após a apresentação.
 
>> 29 e 30 de abril (sáb. e dom., 19h)
Teatro 171 (Rua Capitão Bragança, 35, Santa Tereza)
• Ingressos à venda na bilheteria do teatro ou no site do Sympla. Em 29 de abril, espetáculo com acessibilidade em libras e bate-papo após a apresentação.

>> 7 de maio (dom., 19h)
Centro Cultural Vila Santa Rita (Rua Ana Rafael dos Santos, 149, Vila Santa Rita)
• Entrada franca, limitada à lotação do espaço. Bate-papo após a apresentação.

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