As atrizes Fernanda Nobre e Maria Helena Chira  em cena de 'A desumanização'

As atrizes interpretam jovem que lida com o trauma da perda da irmã gêmea e em seu processo de amadurecimento se depara com uma sociedade conservadora, na pequena cidade islandesa onde vive

Victor Lemini / divulgação

Lançado em 2013, o livro “A desumanização”, de Valter Hugo Mãe, focaliza, em uma pequena vila da Islândia, a menina Halla, que perdeu a irmã gêmea, Sigridur, muito cedo, e tem que viver com o peso de carregar em si a existência das duas. As passagens da vida, a solidão e a busca pela identidade estão no cerne da obra, na qual se baseia a peça homônima, que chega a Belo Horizonte na próxima sexta-feira (21/4).

Estrelada pelas atrizes Fernanda Nobre e Maria Helena Chira, com direção de José Roberto Jardim, a montagem cumpre temporada no CCBB-BH até o próximo dia 15 de maio, com sessões de sexta a segunda, às 19h. Foi de Maria Helena a ideia de transpor para o palco o romance de Valter Hugo Mãe. Ela conta que, assim que leu o livro, teve a impressão de que ele era muito imagético e teatral.

“A descrição da personagem, das imagens, tudo me pareceu perfeitamente adaptável para a cena. Visualizei na história uma narrativa teatral. Tem muitos temas, é uma obra com um espectro amplo de assuntos, mas o que me pegou de cara foi a coisa da solidão, de como essa menina se sentia sozinha e como simbolizava a falta de identidade, essa sensação que acho que acomete todo mundo em algum momento da vida”, diz.

"Nós duas fazemos as duas irmãs, sendo que, às vezes, as duas interpretam só uma das gêmeas. É propositalmente bem borrado esse quem é quem. No livro, está claro qual morreu, mas Valter Hugo Mãe também mistura as memórias, faz um pouco esse jogo"

Maria Helena Chira, atriz



Encantada com a poética do livro, ela conta que foi consultar o diretor sobre a possibilidade de uma adaptação. Jardim leu o romance e, sem pestanejar, disse que sim, renderia uma peça com muita potência, segundo a atriz. Ela conta que, movidos pelo desejo de levar ao público essa história que trata de questões tão profundas, a primeira coisa que fizeram foi procurar Valter Hugo Mãe, que deu o aval para a montagem.


Duas atrizes 

Maria Helena recorda que a ideia inicial era fazer um monólogo. “Começamos nós dois, eu e o Zé Jardim, a trabalhar na adaptação do texto. Não tinha mais ninguém nesse primeiro momento do processo. À medida em que a gente ia trabalhando, começamos a sentir a falta de uma outra pessoa. Pensamos logo na Fê (Fernanda Nobre), que já conhecia o livro e tinha, inclusive, lido uma das adaptações que fizemos”, conta.

Ela destaca que pesou, também, o fato de serem duas atrizes muito parecidas fisicamente, o que vem muito a propósito, já que se tratam de personagens gêmeas. Maria Helena aponta que não é uma atriz interpretando Halla e outra Sigridur – trata-se, antes, de um jogo em que elas embaralham os papéis que encenam.

“Com a entrada da Fê, a gente começou a trabalhar com essa coisa do duplo. Nós duas fazemos as duas irmãs, sendo que, às vezes, as duas interpretam só uma das gêmeas. É propositalmente bem borrado esse quem é quem. No livro, está claro qual morreu, mas Valter Hugo Mãe também mistura as memórias, faz um pouco esse jogo”, observa.

Após o trabalho inicial de Jardim e Maria Helena, o ator e tradutor Fernando Paz entrou no projeto para arrematar a adaptação da obra, segundo o diretor. “Primeiro eu e Maria Helena pegamos os pontos de interesse, as curvas dramáticas, os lugares mais imagéticos. Depois veio o Fernando, sendo um estimulador, fazendo a ponte literária e teatral. Ele é também um literato, além de grande ator, então falou as duas línguas com a gente”, aponta.

Ele considera que o maior desafio de se dirigir uma peça adaptada de um livro como o romance de Valter Hugo Mãe é entender o que o suporte teatral pode trazer de provocação simbólica e poética para além do que o texto já oferece. O trabalho, segundo o diretor, consiste em descobrir como dar uma camada dramática e performática à história.

"Trata-se não de reafirmar o livro, mas entender o que do livro vai ser uma grande potência no palco, de forma que quem o leu tenha o prazer da narrativa e tenha a sobreposição do que o teatro pode somar, com toda uma orquestração de elementos que podem trazer um outro tipo de gozo, de prazer"

José Roberto Jardim, diretor



Potência no palco

“Trata-se não de reafirmar o livro, mas entender o que do livro vai ser uma grande potência no palco, de forma que quem o leu tenha o prazer da narrativa e tenha a sobreposição do que o teatro pode somar, com toda uma orquestração de elementos que podem trazer um outro tipo de gozo, de prazer”, ressalta.

Para Jardim, dirigir “A desumanização” é uma oportunidade de recriar a jornada proposta por Valter Hugo Mãe, na qual o mundo e suas contradições encontram símbolos e lirismos tão arquetípicos quanto o desejo da personagem Halla em sobreviver ao que ela considera absurdo e, paradoxalmente, belo. “É um grito por sua paridade, autonomia, liberdade, e pela busca de entendimentos nesse mundo tão árido e individualista”, analisa.

O palco está dividido em duas metades, com cenários espelhados, e cada atriz ocupa uma das metades. Num jogo de projeções em tempo real, em que contracenam com a própria imagem e também uma com a outra através das figuras projetadas, Maria Helena e Fernanda Nobre contam a história das irmãs Halla e Sigridur.

Jardim diz que escolher os elementos do livro que serão levados para a cena é um trabalho minucioso. Ele observa que é preciso levar em conta uma maneira de não subtrair nada da obra e, ao mesmo tempo, criar espaços para as possíveis contribuições da linguagem cênica. “São muitas portas abertas em um livro, mas, para condensar tudo em uma hora no palco, a gente tem que fazer escolhas”, pontua.

As atrizes Fernanda Nobre e Maria Helena Chira de frente uma para a outra, no palco

As atrizes Fernanda Nobre e Maria Helena Chira de frente uma para a outra, no palco

Victor Lemini / divulgação

Voz feminina

A questão da solidão e da identidade foram as escolhas basilares, mas também a voz e o olhar femininos. “A gente tem essa figura que está falando no presente, mas também no passado, por isso o recurso de fazer esse espelhamento das duas atrizes, que se colocam como atrizes, mas também como mulheres, abordando os ritos de passagem daquela menina da história e também os seus próprios”, diz o diretor.

O espetáculo estreou em 2019, em São Paulo, e teve vários desdobramentos, por causa da pandemia, segundo Maria Helena. Ela conta que, durante o período de isolamento social, foram realizadas cerca de 30 lives, com cada atriz em sua casa.

“Foi bem interessante, porque pudemos nos concentrar no texto e, inclusive, mexer em alguma coisa, porque fomos sentindo o que cabia melhor. Quando começou a abertura, a gente fez no teatro, mas sem plateia, com transmissão on-line pelo sistema do Sesc. A partir do retorno ao presencial, fizemos uma temporada no CCBB de Brasília, outra no Rio de Janeiro e agora estamos indo para Belo Horizonte”, diz.

Maria Helena pontua que, de maneira geral, no teatro existe a preocupação em se trabalhar com temáticas que dialoguem com a realidade, e que no caso de “A desumanização” não foi diferente.

A atriz destaca que, tendo que amadurecer sem a sua metade e melhor amiga numa cidade conservadora do interior da gelada Islândia, a personagem Halla se depara com situações de intolerância que a fazem rever de maneira drástica sua relação com a família, com os amigos e com os moradores em geral daquela sociedade opressiva.

“Em 2019, estávamos sob o governo Bolsonaro. Uma coisa que a peça aborda é como a cidade olha e como julga essas meninas, de uma maneira muito conservadora e opressora. E tem a reação da Halla a isso. É algo que espelha um pouco a revolta que a gente sentia com o descaso daquele governo para com a cultura. Trabalhamos também com esse lugar do feminino, o que ele pode acrescentar ao mundo”, destaca.


Grande sacada

José Roberto Jardim destaca que o que mais chama a sua atenção na obra de Valter Hugo Mãe é a forma poética como ele trata questões profundas e por vezes dolorosas, bem como o tom que ele imprime à história. Ele sublinha a sensibilidade e a poesia capazes de expandir a noção de viver.

“Ambientar esse drama, que se desenrola na voz de uma menina de 13 anos, em uma vila na Islândia, muito conservadora e fechada, é uma grande sacada. Ele cria essa fábula em um universo tão distante do dele e ainda assim consegue tocar em pontos sensíveis, sempre com muita docilidade e muita penetração – características que fazem dele o autor incensado que é”, ressalta.

Maria Helena enxerga os mesmos atributos no livro do qual a peça foi adaptada. Ela acredita que a repercussão positiva que o espetáculo vem tendo deve-se, em boa medida, à força do texto. “Ele fala de coisas duras – morte, perda, aborto –, mas consegue fazer isso de maneira muito leve, muito poética. Com esse achado do Zé de trabalhar a coisa do duplo, conseguimos um link muito bom entre encenação e texto, então as respostas têm sido muito positivas”, diz.

Os últimos espetáculos que passaram pelo CCBB-BH tiveram grande procura por parte do público. “Molière”, estrelado por Matheus Nachtergaele, que cumpriu temporada entre 17 de março e 3 de abril, e “Ficções”, com Vera Holtz, que segue em cartaz até 8 de maio, tiveram todas as sessões com ingressos esgotados.

“A desumanização” segue o mesmo caminho. As vendas de ingressos para o primeiro fim de semana da peça em Belo Horizonte foram abertas no último dia 12 e eles já estão esgotados. Para as sessões do segundo fim de semana em cartaz, dos dias 28 de abril a 1º de maio, as vendas serão abertas nesta quarta-feira (19/4).

A assessoria do Centro Cultural informa que o sistema adotado é o de abertura de vendas semanal, com os ingressos liberados sempre às quartas-feiras para a semana seguinte. Para quem estiver interessado, a recomendação é, portanto, ficar atento e realizar a compra no dia de abertura das vendas.

“A DESUMANIZAÇÃO”
Direção: José Roberto Jardim. Com Fernanda Nobre e Maria Helena Chira.
• Estreia na próxima sexta-feira (21/4), no Teatro 2 do CCBB-BH (Praça da Liberdade, 450, Funcionários, 3431-9400).
• Temporada até 15/5, com sessões de sexta a segunda, sempre às 19h.
• Classificação indicativa: 14 anos.
• Duração: 50 minutos.
• Ingressos a R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia*), à venda no site e na bilheteria do CCBB-BH, que funciona de quarta a segunda, de 10h às 22h.
• * Clientes BB têm direito à meia-entrada na compra com Cartão Ourocard.