Os integrantes do Cordel do Fogo Encantado, de pé, no palco, iluminados por holofotes

Show de hoje no Sesc Palladium terá a participação especial de Gabi da Pele Preta e conta com "Cio da terra" no repertório

Fred Jordão/Divulgação

Quando o movimento manguebeat surgiu, em Recife, no início da década de 1990, com bandas que mesclavam maracatu, rock, hip hop, funk e música eletrônica com letras recheadas de crítica social, havia um grupo de jovens no sertão pernambucano atento a essa forma diferente de se expressar.

Embora não fizessem exatamente parte do movimento, José Paes de Lira, Clayton Barros, Emerson Calado, Nego Henrique e Rafael Almeida produziam um som que explorava os ritmos tradicionais de forte expressão no Nordeste, como o samba de coco, o frevo e o maracatu, e as poesias declamadas dos repentistas e cantadores da região. 



Nas apresentações, eles não apenas tocavam as canções, mas levavam elementos cênicos que faziam com que as pessoas ficassem em dúvida se se aquilo era uma peça de teatro ou um show.

Naná Vasconcelos

Ainda sem nome à época, o grupo circulava pelo sertão pernambucano com um espetáculo batizado de “Cordel do fogo encantado”. Só depois de serem descobertos pelo então recém-nascido Festival Rec Beat, em 1999 e pelo percussionista Naná Vasconcelos (1944-2016) é que os garotos resolveram batizar o grupo com o nome que antes era do espetáculo.

“A gente não se definia como uma banda”, lembra José Paes de Lira, o Lirinha. “Éramos um grupo de amigos que se interessava pela tradição dos repentistas e dos cantadores, que é aquela poesia rimada e metrificada, e buscava a composição de uma base instrumental e musical para que essas poesias fossem ditas.”

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O grupo de amigos, no entanto, se profissionalizou. E, ao longo de 24 anos, gravou quatro discos autorais, um DVD e participou dos filmes "Deus é brasileiro", de Cacá Diegues, e "O homem que engarrafava nuvens", de Lírio Ferreira. Entre 2010 e 2018 o Cordel fez um hiato, voltando a se apresentar em 2019, com a turnê de lançamento do disco “Viagem ao coração do sol”.

Nesta quinta-feira (20/4), a banda desembarca em Belo Horizonte para apresentar o show “Água do tempo”, no teatro do Sesc Palladium. A apresentação contará com participação da cantora pernambucana Gabi da Pele Preta.

Com projeções mapeadas e jogos de iluminação característicos do grupo, o show de hoje vai fazer uma síntese da história do Cordel. No repertório, estão desde canções do primeiro álbum (de 2001, homônimo à banda), até arranjos inéditos que, possivelmente, serão lançados futuramente como singles. Eles também cantarão “O cio da terra” (Chico Buarque e Milton Nascimento).

“É uma tradição do nosso grupo fazer espetáculos intermediários entre os discos autorais. Esses espetáculos são importantes para nós, porque a gente consegue experimentar novas ideias e composições ao vivo, afinal a banda tem uma origem no teatro”, afirma Lirinha.

Ele lembra que a pandemia prejudicou a turnê de “Viagem ao coração do sol”. “Quando estávamos no meio da circulação dessa turnê, tivemos que parar. O que nos consola é saber que foi uma quebra para todo mundo, para toda a humanidade. Todos nós participamos dessa inesquecível experiência humana.”

“Água do tempo” foi concebido como forma de marcar o retorno pós-pandemia. Segundo Lirinha, o tempo remete à memória e a água representa a constância e a vitalidade da banda.

Transformação

Uma das principais músicas do grupo é “Chover (Ou invocação para um dia líquido)”, cuja letra pede a chuva no sertão não no sentido literal, e sim como meio para a transformação.

A canção, presente no primeiro disco do Cordel, sintetiza bem a ideia de transformação do grupo, que não se concentra apenas nas questões sociais - tão caras à banda, diga-se. Há também uma ideia de subversão musical, ao escolher a percussão como base de condução da música e um único violão ao fundo.

“Realmente é uma sonoridade diferente. Num primeiro momento, tivemos muita dúvida se deveríamos trazer convencionalismo para o som não ficar tão estranho, tão agressivo. Mas, muito influenciados por Naná (Vasconcelos) e por nossos próprios sonhos, decidimos ir com essa estranheza mesmo para caracterizar nosso som como único”, conta.

Grande parte do repertório da banda tem forte ligação com a tradição da música negra brasileira e com os terreiros de umbanda. Muitas letras invocam o povo Xukuru, originário do município de Pesqueira (PE). Somado a isso o fato de pertencer à classe artística brasileira, Lirinha foi um crítico contundente do governo Jair Bolsonaro.

“Houve um visível e notório desmonte de conquistas que nós tivemos nos últimos anos, independentemente de quais partidos políticos estavam no poder. Foi realmente uma estrutura de ações para desarticular um processo muito importante, que era o processo de descentralização da economia da cultura”, diz.

Para os próximos anos, ele espera uma transformação na cultura nacional no sentido da descentralização. “O Samba de Coco Raízes de Arcoverde gravou disco pela primeira vez na vida através de políticas públicas culturais. Isso gerou uma atenção para o interior do país. Ao mesmo tempo, grupos do Pará, da Amazônia e de outras regiões que eram totalmente esquecidas do processo de fomento cultural também passaram a fazer parte dessa cena cultural. A gente espera que isso volte a acontecer para que grupos periféricos do país consigam sobreviver”, afirma.

Rosto de mulher em pintura de Elvira Freitas Lira

Pintura de Elvira Freitas Lira, que expõe trabalhos em BH

Reprodução

FILHA DE PEIXE...

Seguindo os passos do pai, Elvira Freitas Lira, filha de Lirinha, tornou-se artista. Aos 23 anos, ela realiza em BH sua primeira exposição individual na Galeria Acaiaca (Av. Afonso Pena, 867, 10º andar, Centro).
 
Intitulada “23”, a mostra aberta na quarta-feira (19/4) trouxe Lirinha mais cedo à capital mineira. “Cheguei hoje (quarta-feira). Vim fazer uma surpresa para ela, que nem sabe que eu estou aqui.”, contou.
 
“23” tem curadoria de Noele Karime e fica em cartaz até 25/5. Visitas gratuitas devem ser agendadas pelo Instagram (@galeriaacaiaca).
 

“ÁGUA DO TEMPO”

Show do Cordel do Fogo Encantado. Com participação de Gabi da Pele Preta. Nesta quinta-feira (20/4), às 21h, no Sesc Palladium (Rua Rio de Janeiro, 1.046, Centro). Ingressos à venda na bilheteria do teatro e pelo site do Sympla, por R$ 120 (plateia 1/inteira), R$ 100 (plateia 2/inteira) e R$ 60 (plateia 3/inteira). Meia-entrada na forma da lei. Informações: (31) 3270-8100.