Desde que Mauricio de Sousa, o criador da Turma da Mônica, oficializou, no dia 10 de março, sua candidatura à cadeira de número 8 da Academia Brasileira de Letras (ABL) – antes ocupada por Cleonice Berardinelli (1916-2023) –, forjou-se uma polêmica em torno de ser justo ou não um criador de histórias em quadrinhos vergar o fardão de imortal da vetusta instituição literária.





Longe de ser generalizada, essa questão, levantada por um dos concorrentes de Sousa à mesma vaga – o jornalista James Akel, autor do livro “Marketing hoteleiro com experiências” e da peça “República das calcinhas” –, chega ao final na próxima quinta-feira (27/4), quando a ABL decide quem será seu novo membro.

Com passagens pela Band, Record e SBT, Akel defendeu sua candidatura, em entrevista à revista “Veja”, com críticas a Sousa, argumentando que histórias em quadrinhos não são literatura. “O que realmente me motivou (a fazer a inscrição para a ABL) foi a candidatura de Mauricio de Sousa. Em sua carta, ele diz que ‘quadrinhos são literatura pura’. Isso me deixou zangado, e decidi me inscrever imediatamente”, disse.

Embora não seja o nome favorito para ocupar a vaga, Mauricio de Sousa viu sua candidatura ganhar impulso nas últimas semanas, graças aos ataques de Akel. Antes, o jornalista já havia se envolvido em outra polêmica, em 2017, ao defender a tortura durante a ditadura militar no Brasil. O nome de Mauricio de Sousa ganhou não só o apoio da Câmara Brasileira do Livro (CBL), como o de integrantes da própria ABL, como Paulo Coelho, Gilberto Gil e Fernanda Montenegro.





O outro candidato à vaga, o filólogo Ricardo Cavaliere – que largou como favorito para ser o novo imortal da Academia –, tem apostado em uma campanha discreta, em moldes mais tradicionais. O “pai” da Mônica, por sua vez, apenas disse ter se surpreendido com a repercussão positiva que seu nome vem ganhando nas redes. “Significa que não errei tanto”, declarou.

Antes, disse em suas próprias redes sociais que “a candidatura à ABL é para reunir esforços com todos os acadêmicos em levar a importância desta entidade secular para que crianças e jovens conheçam mais a nossa literatura e grandes autores que por lá estão e já estiveram”.


Ocupantes da cadeira

A cadeira disputada por Maurício de Sousa tem como patrono o advogado, magistrado e poeta Cláudio Manoel da Costa. Além de Cleonice Berardinelli, já teve como ocupantes Alberto de Oliveira, Oliveira Viana, Austregésilo de Athayde, Antonio Callado e Antonio Olinto.





A candidatura de Mauricio de Sousa à ABL se dá no ano em que sua personagem Mônica chega aos 60. Ela é inspirada em uma de suas filhas. A “Turma da Mônica” já vendeu mais de 1,2 bilhão de gibis e 15 milhões de livros. No fim de 2022, Mauricio de Sousa recebeu uma homenagem da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) pelo trabalho de décadas incentivando a leitura.
 
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O presidente da Academia Mineira de Letras (AML), Rogério Faria Tavares avalia que “a candidatura de Mauricio de Sousa honra a ABL e qualquer instituição cultural que for abordada por ele. É um grande artista, um artista da imagem, mas também do texto, da criação de narrativas e de histórias. Isso é o que interessa”.


Polêmica falsa

Tavares observa que, ao longo de seis décadas, o mais popular autor de HQs do Brasil atingiu um público imenso, contribuindo para formar gerações de leitores e leitoras, disseminando o hábito da leitura entre jovens e crianças. “Essa é uma polêmica falsa. Não faz o menor sentido discutir esse assunto”, diz.





Akel defende que os quadrinhos estão no campo do entretenimento, e não da educação. Para Tavares, trata-se de um pensamento enviesado. “Qual é o problema da leitura como entretenimento, como diversão, como lazer? Nenhum. Não é problema, é solução. A leitura também deve ser capaz de gerar alegria. O legado de Mauricio de Sousa é majestoso”, afirma.
 

Rogério Faria Tavares, presidente da Academia Mineira de Letras, diz que discussão sobre candidatura de Mauricio de Sousa 'não tem sentido'

(foto: Elcio Paraíso/divulgação)
 

Para a escritora Ana Elisa Ribeiro, a suposta ambiguidade entre a arte sequencial e o que ela chama de “literatura elegível” já foi superada há muito tempo. “De fato, em décadas atrás os quadrinhos já foram discutidos como uma literatura menor, sem cunho educativo. Houve uma crítica à entrada dos quadrinhos nas escolas, por exemplo. Mas isso foi nos anos 1970; é um debate ultrapassado”, observa.

Ela considera que já há algum tempo as HQs se integram completamente às possibilidades de leituras das pessoas. Para a autora de livros de crônica, conto, poesia e infantojuvenis, os quadrinhos não garantem que alguém vá se tornar um leitor de livros, mas tampouco atrapalham.





Ana Elisa observa, ainda, que é também uma linguagem plenamente absorvida pelo mercado editorial. “Aí não estamos nem mais falando de valor literário; estamos falando de como o mercado editorial, no Brasil e no mundo, gosta dos quadrinhos, publica quadrinhos em grande volume”, pontua.

Para a escritora, subjazem outras questões na cruzada de Akel contra a candidatura de Mauricio de Sousa à ABL. “Acho meio engraçado desqualificar os quadrinhos para desqualificar uma candidatura. Quando falamos da ‘Turma da Mônica’, estamos falando de um tipo de quadrinho. É um gênero muito diversificado e muito difundido, muito popular”, afirma.


Instituição conservadora

Mauricio de Sousa é emblemático desse alcance, segundo a escritora. “Talvez por isso mesmo alguém o desqualifique para integrar uma academia, pelo gênero que ele produz. As academias são das instituições mais conservadoras que existem, então também não é surpreendente que essa discussão se dê justamente na disputa por uma vaga em uma instituição como a ABL.”





Ela observa, contudo, que as academias, em geral, vêm se abrindo lentamente para pautas mais contemporâneas, para a diversidade. “Ainda há muita controvérsia a respeito, mas a gente tem visto as pessoas que vão assumindo cadeiras na ABL ao longo dos últimos tempos”, diz. Com efeito, o atual presidente da ABL, o jornalista Merval Pereira, percebeu que a instituição precisava se tornar mais popular.

As últimas eleições foram para lá de badaladas e ajudaram a arejar o quadro geral da ABL com a escolha de um músico, de um cineasta e de uma atriz – respectivamente Gilberto Gil, Cacá Diegues e Fernanda Montenegro. Os discursos dos três, em defesa da valorização da língua portuguesa, repercutiram como nunca na imprensa.
 

A escritora Ana Elisa Ribeiro questiona a discriminação dos quadrinhos e afirma que as HQs fazem parte do hábito de leitura da população

(foto: Instagram/reprodução)


Editor da extinta revista “Grafitti 76% Quadrinhos” e autor de obras como “Um dia, uma morte”, de 2007, com Piero Bagnariol, e “Santelmo enfeitiçado”, lançada no ano passado, em parceria com Erick Azevedo e Piero Bagnariol, Fabiano Barroso destaca que a inclusão de nomes de fora da esfera da literatura nos quadros da ABL está longe de ser novidade.





“Não há propriamente polêmica, mas ignorância ou má-fé por parte das pessoas que estão criticando. A prática é secular na instituição, que desde sempre incluiu pessoas notáveis, de diversas áreas da cultura e da ciência, de Santos Dumont a Fernanda Montenegro. Pessoalmente, considero muito apropriado e coerente com a história da ABL que uma figura como Mauricio de Sousa se torne imortal”, diz.

Ele pontua que já é consensual entre artistas de quadrinhos que se trata de uma expressão independente, com muitas características em comum não só com a literatura, mas também com o cinema e com as artes plásticas. “A relação entre texto e imagem, os recursos gráficos para definir ritmo e passagem de tempo, os balões de fala, dentre outras características, são próprios dessa forma de arte”, observa.

Barroso considera Akel um nome obscuro que levantou essa suposta polêmica apenas para ganhar holofotes. “É lamentável que um pretenso escritor que se considere apto a fazer parte da ABL, ou mesmo do rol de escritores brasileiros, tente desqualificar não só um outro candidato, mas toda a história em quadrinhos, ao tentar reduzi-la a mero entretenimento, como o fez em entrevista recente”, diz.




 

Ilustração publicada quando Mauricio de Sousa ingressou na Academia Paulista de Letras, em 2011

(foto: Reprodução)
 

Discussão superada

O historiador, professor, editor e tradutor de quadrinhos Márcio Rodrigues, ministrante do curso Quadrinhos Africanos, endossa as palavras de Barroso. Ele salienta que essa discussão sobre a relação entre HQs e literatura não é nova, pelo contrário, para pesquisadores da área é um assunto mais do que superado.

“Os quadrinhos se constituem como uma arte própria, distinta da literatura. Há um campo de estudos, inclusive de natureza acadêmica, que não valida mais esse tipo de argumentação, tendo em vista que as HQs têm autonomia, têm códigos próprios, uma função social bem diferente e uma outra forma de organização. Não são literatura”, diz.

Não obstante, isso não é algo impeditivo para que alguém que se dedica a essa arte se candidate a uma cadeira na ABL, conforme aponta. “Há tempos a Academia não inclui entre os seus imortais apenas escritores que se dedicam exclusivamente à literatura. Já houve a inclusão de músicos, historiadores, cientistas, entre outros, que contribuíram de forma significativa para a cultura brasileira”, destaca.





Ele considera a polêmica levantada por Akel desnecessária, colocada de uma forma totalmente enviesada, para se legitimar diante de um candidato com maiores chances. Rodrigues observa que o concorrente de Sousa de fato está certo ao dizer que gibi não é literatura, mas faz essa distinção de forma questionável.

“Ele se vale desse argumento com finalidades que julgo serem um tanto problemáticas. Tudo bem que quadrinhos não possam ser vistos como literatura, mas, ao dizer isso, está focado em validar sua eleição, depreciando não só a figura de Mauricio de Sousa, mas os quadrinhos de modo geral, e não se pode dizer que os quadrinhos não sejam uma forma de expressão cultural legítima”, ressalta.

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