Jai tem 9 anos e é uma criança inteligente e feliz, que mora com os pais e a irmã mais velha. Apesar de tudo, diga-se. A família vive em uma moradia com um cômodo só em um basti, o equivalente a uma favela, nos arredores de uma grande cidade da Índia. Mas ele não reclama – afinal, tem uma televisão em casa e pode assistir ao seu programa favorito, o “Patrulha policial”.





Quando um de seus colegas de escola desaparece, decide usar as habilidades de resolução de crimes que aprendeu na TV para encontrá-lo. Para tal, conta com a ajuda de dois amigos, Pari e Faiz. Desta maneira, Jai cria sua própria patrulha. Mas logo outra criança vai desaparecer. E mais outra e outra.

Recém-lançado no Brasil pela Companhia das Letras, “Os detetives da Linha Púrpura” é o romance de estreia de Deepa Anappara. Repórter durante 11 anos na Índia, conheceu vários meninos como Jai e seus amigos. Pela boca dos próprios garotos, que viviam em situação de extrema pobreza, soube do desaparecimento maciço de crianças. Chegou a um número assustador: 180 por dia em toda a Índia.

Leia também: Clássico "O pequeno príncipe" completa 80 anos muito além dos clichês 

É um tema pesado, que passa ao largo da cobertura da imprensa, mas que Deepa soube tratar com seriedade, apuro e respeito em sua estreia na ficção. Todo o relato é feito pela perspectiva de um narrador infantil. É Jai quem nos guia para a vida no basti – e sua voz, ora ingênua, ora atrevida, é totalmente convincente. Leva o leitor para lugares sombrios, mas sem sobrecarregá-lo.





Publicado originalmente em 2020, pouco antes do início da pandemia, “Os detetives da Linha Púrpura” foi eleito um dos livros do ano por “The New York Times”, “The Washington Post” e “Time”. Desde então, já foi editado em 23 países – na Índia, somente em inglês, uma das línguas oficiais daquele país. 

Da cobertura na imprensa para a publicação do livro passou-se mais de uma década. Deepa Anappara só estreou na literatura quando deixou o jornalismo e a Índia. Radicada há 14 anos em Londres, ela afirma que a situação em seu país não mudou em relação ao que conheceu em sua trajetória como repórter. 

“Quando você vê pobreza praticamente todos os dias, chega um ponto em que não se importa mais. O livro foi uma maneira de lembrar às pessoas que elas têm que ter um novo olhar sobre a questão”, afirma a escritora, em entrevista ao Estado de Minas. 



(foto: Liz Seabrook/Divulgação)
 

Quando você percebeu que o desaparecimento de crianças seria a história que queria contar?

Eu trabalhava como jornalista em Déli já por um bom tempo e havia essas histórias sobre crianças desaparecendo frequentemente. Na época, a estimativa é de que 180 crianças desapareciam por dia em todo o país. As histórias não chegavam na grande imprensa porque as crianças eram pobres, ninguém estava interessado nisso.

Se fossem ricas, faria mais sentido, mas, sendo pobres, ninguém ligava. Na época, entrevistei tanto as crianças quanto suas famílias. Senti que a história daquelas crianças, que eram completamente ignoradas, merecia ser conhecida. Na Índia há tantos problemas –, discriminação, questões religiosas –, que aquele não parecia importante.

Quando me mudei para Londres, comecei a estudar escrita criativa e pensei que este poderia ser um tema para ser trabalhado na ficção. Mas levou muito tempo para que eu conseguisse, quase 10 anos. Também senti que eu tinha que ter o direito de escrever sobre as crianças, demorei para entender como faria isso de maneira respeitosa.





Quão difícil foi escrever sob o ponto de vista de um garoto de 9 anos?

Foi complicado, mesmo que eu soubesse que iria escrever sob o ponto de vista das crianças desde o início. Mas nunca estudei literatura inglesa, trabalhava como jornalista, e você sabe que, como jornalista, pode até ter uma escrita um pouco mais lírica, mas tem que manter um padrão, especialmente se escreve em jornais.

Além disso, como jornalista, não queria dar nenhum dado errado. E para escrever ficção você tem que usar mais a imaginação. Li vários livros, vi filmes sob o ponto de vista das crianças, escrevi contos, até que finalmente encontrei em Jai uma voz.

Ele é uma criança, é ingênuo à sua maneira. Mas é também uma criança feliz, e achei que isto era importante, porque existe uma ideia sobre a pobreza de que todas as vidas são miseráveis. Não estou dizendo que seja fácil, mas as pessoas encontram suas vidas em meio a circunstâncias difíceis. 





Por que você escolheu escrever com o estilo de uma narrativa de detetives? 

Os programas de TV são muito populares na Índia. As pessoas adoram assistir a competições de dança, de canto e têm um grande apetite por produções sobre crimes reais. Além disso, na vida real, as crianças não têm sua própria voz. Jai e seus amigos pretendem ser detetives, como se isto desse a eles algum senso de controle, um meio de sair de uma situação difícil. 

Qual foi o impacto na Índia quando o livro foi publicado, três anos atrás?

Foi bem recebido e, para mim, era importante que os indianos entendessem o livro, já que a leitura que se faz da pobreza pode muito facilmente cair em clichês. Como você bem sabe no Brasil, se está falando sobre uma região pobre, existem já algumas ideias prontas. Como indianos, somos muito cautelosos em relação a isto.

Queria ser o mais correta possível, não iria estereotipar o meu país e o meu povo. Queria a visão deles, das pessoas. Quando você vê pobreza praticamente todos os dias, chega um ponto em que não se importa mais. O livro foi uma maneira de lembrar às pessoas que elas têm que ter um novo olhar sobre a questão. 





O dado apresentado no livro, de 180 crianças desaparecidas por dia, é muito alarmante. Os números no Brasil são também assustadores: 80 mil em 2020, um terço delas menores. Houve alguma mudança na Índia? 

Assim que o livro foi publicado, o governo tentou criar algumas políticas (para o combate) ao tráfico de crianças. Infelizmente, veio a pandemia e a situação dos muito pobres ficou pior. O tráfico aumentou ainda mais porque os pais não têm condições de manter duas crianças, só uma. E, se alguém chega dizendo para uma família que tem um lugar para seu filho, eles acabam mandando.

Ou seja, nada mudou, tenho medo de que a situação tenha piorado. A polícia não registra muitos casos, então não temos uma ideia dos números reais. A economia está ruim, há poucos empregos, a população é enorme, então fica muito mais fácil para que traficantes encontrem crianças, as sequestrem ou as levem com o consentimento dos pais. 

A trama é ambientada em uma grande cidade, que não é nomeada. Por quê?

O cenário é muito inspirado em Déli, leitores indianos poderão reconhecer coisas da cidade na trama. Não dei nenhum nome porque quis ter um espaço para mim. Eu me baseei em casos reais, incidentes como os do livro realmente aconteceram, então quis manter distância dessas tragédias, porque acho que não tinha o direito de escrever sobre o que os pais estavam passando, o tipo de luto que sentiram. Desta maneira, foi uma forma de dar permissão a mim mesma de fazer ficção.





O romance traz várias expressões e palavras em híndi. Já foi traduzido para o idioma oficial da Índia?

Infelizmente, não. A situação atual está muito complicada, parecida com a do Brasil na gestão Bolsonaro. Temos um governo quase fascista, fascista inclusive em vários sentidos: discriminatório com os muçulmanos; jornalistas e escritores são escrutinados. Não vejo esse livro traduzido para o híndi em um futuro próximo.

Não fosse sua atuação como jornalista o romance “Os detetives da Linha Púrpura” não existiria?
Absolutamente. Nunca poderia ter escrito o livro se não tivesse trabalhado como jornalista. As experiências que tive foram a chave para escrevê-lo. Se não tivesse tido uma experiência pessoal, poderia escrever de forma vaga. E realmente encontrei muitas crianças, vi como eram, como falavam. E o principal: eles não se veem como vítimas. 

“Os detetives da Linha Púrpura” é o seu primeiro romance e já foi publicado em mais de 20 países. Quão difícil foi chegar ao mercado editorial?

Devo dizer que este é meu primeiro romance publicado. Antes dele, escrevi outros três livros que não  foram: dois romances e uma coletânea de contos. E alguns destes textos nunca serão lidos por ninguém. Nunca vou mostrá-los, já que sei que não são bons o suficiente. Ou seja, ‘Os detetives da Linha Púrpura’ é o meu quarto livro.



Foi muito difícil ser publicado. Além do mais, porque escrevo em inglês e sobre outro país. E isto é mais complicado, pois o interesse que se tem por estas histórias não é grande, a menos que você estereotipe o seu país. Como tampouco tenho uma formação literária, aprendi muito mesmo foi quando estava escrevendo.


“OS DETETIVES DA LINHA PÚRPURA”

• Deepa Anappara
• Tradução de Odorico Leal
• Companhia das Letras (376 págs.)
• R$ 89,90 (livro) e R$ 39,90 (e-book)




compartilhe