Quando foi colher depoimentos para o documentário “Jair Rodrigues: deixa que digam”, o diretor Rubens Rewald esperava encontrar “zonas de sombra” no personagem focalizado, de forma a ter o conflito que as narrativas cinematográficas pedem. Não encontrou. Todos os entrevistados apenas ratificaram a imagem do cantor que trazia em si – no palco ou fora dele – uma alegria inabalável.
A solução que o cineasta encontrou foi fazer um registro documental com o espírito de Jair Rodrigues: dinâmico e alto astral. Após ser exibido no Festival É Tudo Verdade, em 2020, e vencer na categoria de melhor filme pelo voto do público no 13º Brazilian Film Festival, de Chicago, em 2022, o longa chegou, na semana passada, ao circuito comercial de cinema. Em BH, está em cartaz no UNA Cine Belas Artes.
Rewald conta que o embrião do projeto remonta a 2012 e partiu de um pedido do próprio cantor. Naquele ano, o diretor rodou o filme “Super nada”. Na hora de montar o elenco, pensou em convidar Jair Rodrigues, que topou se aventurar como ator.
Ao término das filmagens, uma relação de amizade havia se estabelecido entre os dois. “Jair fez um trabalho ótimo e, inclusive, ganhou vários prêmios. Quando o ‘Super nada’ foi lançado, ele chegou com aquele jeito dele, me chamando de ‘meu diretorzinho’, e sugeriu que eu fizesse um filme sobre ele. Gostei da ideia, ficamos de voltar a falar a respeito, mas ele morreu antes (em maio de 2014, aos 75 anos)”, diz Rewald.
O projeto foi para a gaveta, mas, cerca de um ano depois, o cineasta considerou que um artista da estatura de Jair Rodrigues merecia que o projeto de um documentário fosse levado adiante. Ele diz que entrou em contato com a família do cantor, que chancelou a ideia e deu todo o suporte possível para que o filme fosse realizado.
Os filhos, Jair Oliveira e Luciana Mello; a viúva, Claudine Rodrigues; e o irmão, Jairo Rodrigues, integram a extensa lista de pessoas que deram depoimentos para a câmera de Rewald. O documentário se estrutura a partir desses depoimentos, que se alternam com imagens de arquivo cedidas pela família e também as que o diretor conseguiu junto a emissoras de TV. Ele diz, a propósito, que havia muito material disponível.
"Todos, unanimemente, me disseram que nunca o viram triste ou mal-humorado. Jair era sempre aquela alegria, aquela extroversão. Isso era uma coisa que eu mesmo já tinha constatado no set de filmagens de 'Super nada'. Às vezes ele vinha de um show, cansado, mas já chegava brincando com um, com outro, plantando bananeira. Ele era a própria utopia existencial da felicidade"
Rubens Rewald, cineasta
“A história do Jair se mistura um pouco com a história da TV no Brasil, cujo boom se deu nos anos 1960, sincronicamente com o estouro da carreira do cantor. O maior trabalho foi fazer a seleção das imagens. A gente teve que deixar muita coisa de fora, com dor no coração, mas era necessário ficar com o filé”, afirma.
Jair Rodriges e a alegria
Entre as personalidades entrevistadas para o filme figuram nomes como Rappin’ Hood, Hermeto Pascoal, Roberta Miranda, Théo de Barros, o crítico e produtor Zuza Homem de Mello (1933-2020) e os pesquisadores Bruno Baronetti e Salloma Salomão, entre muitos outros. Para todos, Rewald perguntava sobre momentos em que Jair estava triste ou de mau humor.
“Todos, unanimemente, me disseram que nunca o viram triste ou mal-humorado. Jair era sempre aquela alegria, aquela extroversão. Isso era uma coisa que eu mesmo já tinha constatado no set de filmagens de ‘Super nada’. Às vezes ele vinha de um show, cansado, mas já chegava brincando com um, com outro, plantando bananeira. Ele era a própria utopia existencial da felicidade”, diz.
Ele destaca que o filme ficou pronto em 2020, mas seu lançamento foi comprometido pela chegada da pandemia, pela paralisação da Ancine (Agência Nacional de Cinema) e pelo descaso com a cultura do governo Bolsonaro. “Mas acho que estou lançando num bom momento, propício para resgatar essa alegria de Jair Rodrigues, porque o Brasil passou, nos últimos anos, por um período muito baixo astral”, destaca.
“Cara, eu tinha esquecido que o Brasil já tinha sido assim”, é o comentário recorrente entre as pessoas que já assistiram ao longa, segundo o diretor. “O Brasil sempre foi um país com suas mazelas, mas havia um otimismo, uma alegria, um espírito mais festivo que Jair Rodrigues personificava. Ele nos dá uma lição nesse sentido, por isso acho que resgatar essa alegria é importante”, aponta.
O diretor ressalta, além desse traço marcante da personalidade, o enorme talento do cantor, que – assim como Elis Regina, sua companheira no clássico programa “O fino da bossa” – era capaz de unir técnica e emoção de maneira rara. “E ele cantava de tudo, do samba ao sertanejo”, diz, destacando que Jair Rodrigues é reconhecido como precursor do rap, por causa da música “Deixa isso pra lá”, da qual o título do documentário é extraído.
“O filme é cheio de música, são mais de 40 ao todo. Tive a preocupação de trabalhar isso. Para cada pessoa que deu depoimento, num dado momento durante a entrevista eu pedia que cantasse um trecho de alguma música famosa na voz dele. Um dos maiores críticos que a gente já teve, Zuza Homem de Mello, também canta. Ele morreu pouco depois. Talvez tenha sido o último registro dele. É um documentário karaokê”, aponta.
Depoimentos de amigos
Sobre as pessoas que iria entrevistar para o documentário, Rewald diz que fez as escolhas a partir de uma divisão em três blocos – o dos familiares e amigos próximos, o das personalidades que interagiram artisticamente com Jair Rodrigues e o dos críticos e pesquisadores. O diretor destaca que pretendeu fazer um retrato tridimensional de seu personagem, com diferentes pontos de vista e diferentes ângulos.
De acordo com ele, esse processo de coleta de depoimentos teve início no segundo semestre de 2018 e foi concluído no segundo semestre de 2019. “O documentário tem uma forma de produção diferente da ficção, em que você primeiro filma tudo e depois vai para a montagem. Neste projeto, a partir de um certo material, a gente já ia montando e, ali nesse processo era possível identificar lacunas que levavam a outros entrevistados”, explica.
Além de Zuza Homem de Mello, o diretor destaca como depoimentos marcantes o de Simoninha, filho de Wilson Simonal – “Que, apesar de curto, é muito bonito e emocionante” – e o de Rappin’ Hood, expoente do hip hop brasileiro nos anos 2000, que se tornou muito amigo de Jair Rodrigues. “A fala dele é carregada de conhecimento e afetividade”, aponta.
Ele diz que Rappin’ Hood, a propósito, é uma das personalidades que toca numa questão que vem sendo revisada ao longo dos últimos tempos: uma suposta postura apolítica de Jair Rodrigues. O cineasta conta que acabou ampliando no filme o espaço dedicado a esse assunto, que não foi pré-determinado; surgiu a partir dos depoimentos.
“Sempre houve quem acusasse Jair Rodrigues de ser alienado, tanto na questão política quanto na racial. Rappin’ Hood, que tem uma visão aguda e muito forte sobre esses dois campos, disse que ele agia politicamente nas entrelinhas, não só por meio das músicas, que eram carregadas de temáticas sociais e raciais, mas também na postura, na performance, porque, com aquele jeito brincalhão, Jair foi ocupando espaços”, observa.
Ele diz, por exemplo, que o cantor foi um dos primeiros, senão o primeiro apresentador negro da TV brasileira (com “O fino da bossa”), além de conseguir colocar a si próprio, com a prole e a esposa, como uma referência da família brasileira – tudo isso num momento histórico do país muito adverso, em pleno regime militar, quando a livre expressão era fortemente cerceada.
“Jair Rodrigues fez mais em termos de política racial do que muitos artistas com discurso afiado e proeminente. Só que foi uma outra forma de agir, que hoje está sendo revista. Mas isso não é algo que eu já tinha como hipótese; surgiu com os depoimentos e acabou ocupando um espaço relativamente grande no filme”, diz o diretor.
O documentário, por vezes, passa a impressão de que tudo na vida artística de Jair Rodrigues aconteceu meio por acaso, porque ele estava no lugar certo, na hora certa. Rewald assente que, com efeito, o cantor não era um empresário, não tinha visão de marketing ou um entendimento de gestão de carreira, mas compensava isso com uma sensibilidade musical aguçada.
Primeira grandeza
“Quando sentia que uma música era para ele, batalhava por essa música, e ela acontecia. ‘Majestade, o sabiá’, de Roberta Miranda, por exemplo, tinha sido recusada por Chitãozinho e Xororó. Quando ela mostrou a música para Jair Rodrigues, ele identificou o potencial da canção”, diz, destacando que o cantor também costumava ir habitualmente nas escolas de samba para se inteirar da obra de compositores desconhecidos.
“Jair Rodrigues não era uma Madonna, que tem total controle artístico da carreira, mas, quando uma música lhe chegava e ele sentia que era boa, agarrava e fazia dela um grande sucesso. Ele tinha um ouvido musical raríssimo. O que tento mostrar no filme é que se trata de um artista de primeira grandeza, que poderia estar no mesmo panteão de Gil ou Paulinho da Viola, mas muitas vezes é colocado só nesse lugar caricatural do cara alegre e brincalhão”, afirma.
Uma curiosidade do documentário sobre Jair Rodrigues é que o filho, que é músico, produtor e ator, além de dar seu depoimento, faz, em certas passagens, o papel do pai. E Jair Oliveira – ou Jairzinho, como é conhecido – se sai muito bem imitando a voz e os trejeitos do pai. Essa atuação foi ideia de Rewald.
“Comecei a pensar em ter cenas ficcionais por duas razões. Primeiro, porque havia muitas histórias boas, saborosas, passagens importantes da vida de Jair Rodrigues que não estavam contempladas em nenhum depoimento e em nenhum material de arquivo. Segundo, eu queria fazer um filme com a cara dele, descontraído, imprevisível. Pensei: por que não criar uma camada ficcional. Me veio a ideia de ter um ator interpretando Jair, e Jairzinho é ator”, diz.
“JAIR RODRIGUES: DEIXA QUE DIGAM”
• (Brasil, 2019, 90 min.). Direção: Rubens Rewald. Documentário, com depoimentos de Jair Oliveira, Luciana Mello, Jairo Rodrigues, Claudine Rodrigues, Rappin’ Hood, Zuza Homem de Mello, Hermeto Pascoal, entre outros.
•Em cartaz no UNA Cine Belas Artes (Sala 2, às 18h40) e, a partir de quinta (4/5), também no Centro Cultural Unimed-BH Minas Tênis Clube.
•Em cartaz no UNA Cine Belas Artes (Sala 2, às 18h40) e, a partir de quinta (4/5), também no Centro Cultural Unimed-BH Minas Tênis Clube.
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