Retas prateadas passeiam pela tela com rapidez, enquanto sirenes e barulhos telefônicos atravessam a faixa musical não menos enfurecida, dando o tom policialesco. A vinheta, quando aparecia na televisão, alertava que o "Linha Direta" estava para começar.
Entre 1999 e 2007, era assim que o programa era introduzido na grade da Globo, momentos antes de seus apresentadores listarem os crimes que seriam estudados e reconstituídos naquele capítulo. Os detalhes macabros eram narrados e ilustrados até com fotos de cadáveres, nas noites de quinta-feira.
Agora, o programa volta a ocupar o mesmo dia e horário, mas repaginado. Em meio à crescente onda do true crime - gênero que se popularizou por reconstituir crimes reais nas telas, páginas e podcast s- e de remakes, parece natural que uma atração de tanto sucesso retorne.
Pela segunda vez, vale dizer, já que a versão mais recente do "Linha Direta", dos anos 2000, não é a primeira. Originalmente, a atração foi exibida por alguns meses em 1990, num formato um tanto mais comedido, mas que já apontava para a fórmula que o consagraria.
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Depois de Hélio Costa, Marcelo Rezende e Domingos Meirelles, Pedro Bial assume a apresentação, a partir desta quinta-feira (4/5), após a exibição de "Cine Holliúdy". Cada episódio trará, novamente, dois casos -um resolvido e outro com desfecho em aberto, com o qual os espectadores serão instigados a colaborar, ressuscitando o caráter social do antecessor.
Para quem não lembra, na mais longeva temporada de "Linha Direta", os espectadores eram convidados a enviar informações sobre suspeitos e foragidos da Justiça por meio de canal telefônico, cartas e, depois, site. Assim, o programa teria ajudado a prender centenas de suspeitos, segundo levantamento da Globo, que não detalha quem eles são.
"Depois que o rosto do cara aparecia na TV, meu amigo, não tinha jeito", relembra Meirelles, que não está envolvido na nova versão. Até foragido que havia cruzado a fronteira do país o programa ajudou a encontrar, ele conta. Agora, o "Linha Direta" vai direcionar o espectador para o Disque Denúncia, num alinhamento com o poder público que reflete os novos tempos e a maior cautela desta estreia.
É com uma plateia muito mais sensível, avessa ao politicamente incorreto de outrora, que a atração precisará lidar. A italiana grávida morta pelo próprio marido, despedaçada numa mala e com fotografia exibida num capítulo em 2005, jamais apareceria na TV hoje, diz Meirelles.
"As pessoas hoje têm mais poder de fogo. Já diziam na época que o programa estimulava a violência, então a emissora terá um desafio muito grande para lidar com esta nova realidade."
Redator final do programa nos anos 2000, Marcel Souto Maior retorna para assinar os roteiros junto com Bial. Ele diz que a atração segue na linha do docudrama - com dramatizações, uso de material de arquivo e entrevistas com envolvidos-, mas mais alinhado aos padrões de jornalismo da Globo e à tecnologia, com câmeras de segurança e imagens de celular ajudando a narrar as histórias.
"Fomos muito cuidadosos. Queremos filtrar a violência que chega na casa das pessoas. O programa quer levar o espectador à reflexão, não fazer prisão de foragido ou estimular a justiça com as próprias mãos. Nunca. Queremos nos aprofundar nos bastidores, com uma camada que vai além da história original", diz o redator.
Assim, o novo "Linha Direta" vai tomar, a cada capítulo, os dois casos estudados para se aprofundar no que Souto Maior define como uma tragédia social do país. No episódio sobre o caso Eloá Cristina, adolescente sequestrada e morta pelo ex-namorado em 2008, por exemplo, a conversa orbitará o universo do feminicídio, trazendo dados sobre o tema e especialistas, para além de policiais e familiares da vítima.
Erros da polícia e os excessos na cobertura da mídia também entrarão no ar neste capítulo inaugural. Racismo, fascismo, LGBTfobia, crimes cibernéticos, linchamento, infanticídio e fake news são outros temas da temporada. Eles aparecem em casos emblemáticos como o do serial killer de homens gays de Curitiba, o do menino Henry Borel e o da Barbárie de Queimadas, caso de estupro coletivo seguido de homicídio.
"O Pedro entrevistador, além do apresentador, vai estar no 'Linha Direta'. Este é um diferencial", resume Souto Maior. Não entrou na lista de debates a recente onda de ataques a escolas, tema sobre o qual o programa não vai se debruçar de jeito nenhum, diz.
Recentemente, casos como o da Escola Estadual Thomazia Montoro suscitaram debates acerca da suposta participação da cultura e da mídia em crimes do tipo. Videogames, por exemplo, seriam responsáveis por desencadear comportamentos agressivos, como sugeriu o presidente Lula.
Estudos e especialistas refutam o argumento, mas indicam que a cobertura midiática pode ter participação na onda de violência, graças ao chamado efeito contágio. A exibição do rosto de criminosos, crucial nos capítulos anteriores do "Linha Direta", é outro tema controverso, pois ajudaria a espetacularizar os casos, muitas vezes perpetrados por gente que quer ganhar fama.
Não que esses questionamentos não estivessem presentes no passado. Quando o Linha Direta saiu do ar, em 2007, foi com bons números de audiência e sob a promessa de um retorno. Mas Domingos Meirelles lembra que os anunciantes fugiam do programa, porque não queriam estar associados à violência. Mesmo dentro da Globo havia quem o considerava uma forma baixa de entretenimento, um projeto sem prestígio e até perigoso.
Dmitri Cerboncini Fernandes, professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora que estuda o tema, reforça que o formato de qualquer programa concebido nos anos 1990 precisaria passar por revisão hoje e que adaptações para o espírito do tempo são necessárias. Isso não quer dizer, no entanto, que as pessoas perderam o interesse pela violência.
"Programas como o 'Linha Direta' tendem a atrair atenção, seja na década de 1990, seja hoje em dia, justamente porque a prática da violência generalizada se encontra em nosso DNA. É algo do nosso dia a dia e que, portanto, nos desperta interesse, atenção e temor", afirma.
Por isso, o "Linha Direta" volta embelezado, num momento em que o true crime levou finesse ao gênero e, em contrapartida, apresentadores como Geraldo Luís e Sikera Júnior, que ganharam projeção vociferando contra bandidos e comemorando o "cancelamento de CPFs", como dizia o último, parecem cair no ostracismo.
Não foi à toa que o "Linha Direta" demorou 16 anos para voltar. O contexto de agora, por mais atentas e propensas ao cancelamento que estejam as redes sociais, é conveniente porque viu florescer diversos conteúdos inspirados em crimes reais, do nacional "Pacto Brutal", sobre o assassinato de Daniella Perez, ao americano "Dahmer: Um Canibal Americano", da Netflix.
Agora, o gênero chega à TV aberta e a um público muito mais amplo. "Temos um formato que foi sucesso na época, mas que hoje encontra, talvez, o mercado ainda mais receptivo para esse tipo de assunto. O true crime é uma mania em todos os streamings e a matéria-prima infelizmente não falta no Brasil. Tanto as histórias do crime, quanto as histórias de justiças e injustiças", diz Pedro Bial, que ainda comandará um podcast semanal sobre o "Linha Direta".
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