A dança tem inegável aspecto terapêutico na superação de problemas psíquicos. O fato de ser um exercício físico certamente contribui para isso, mas talvez esteja na autoexpressão o elemento mais decisivo desse potencial curativo; é como se o corpo que dança estivesse dizendo ao mundo, por passos e gestos, alguma mensagem que ele próprio não é capaz de transformar em palavras.





O longa “Dançando no silêncio”, da franco-argelina Mounia Meddour, é exatamente sobre isso. Acompanhamos a trajetória de Houria, uma jovem que trabalha como faxineira para poder juntar dinheiro para ajudar financeiramente sua mãe, com quem vive na Argélia. Seu sonho, no entanto, é se tornar bailarina profissional, e ela treina pesado para atingir seu objetivo.
 
A jovem se mete em encrenca quando tenta levantar dinheiro de maneira mais rápida que arrumando camas e espanando móveis: resolve apostar em rinhas de carneiros. Ela tem até um bom feeling para a coisa: costuma escolher os melhores animais.
 

 

Certo dia, após ganhar uma bolada, Houria é perseguida por outro apostador, que acha injusto o resultado da disputa ovina e quer o dinheiro que ela levou. A moça é agredida e sofre ferimentos graves, tornando-se muda e incapaz de voltar a dançar.




Trauma e sororidade

O que vem pela frente é basicamente aquilo que mesmo o espectador sem grande imaginação seria capaz de intuir: Houria vai para a fisioterapia – no começo, quer largar tudo, talvez até desistir de viver.

Mas conhece uma turma de pacientes dispostas a ajudá-la a enfrentar essa nova etapa – cada qual com seu trauma e seus demônios, mas todas compreendendo que, unidas, são mais fortes e capazes de superar as barreiras. Sobretudo quando Houria as introduz ao mundo da dança.
 
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Mounia Meddour até mostra, aqui e ali, alguns procedimentos que a distinguem enquanto realizadora. Por exemplo, consegue impor em seu longa uma atmosfera solar, até leve, o que impede que ele se torne muito sentimental, o que é sempre um risco real em se tratando de filmes sobre superação.





Em grande parte das cenas, as personagens femininas estão simplesmente brincando umas com as outras. Parecem por vezes até crianças, falando e fazendo pequenas tolices ou coisas sem importância – aquilo que nós, adultos, falamos e fazemos quando queremos demonstrar afeto e não sabemos muito bem como (ou quando não queremos dar solenidade demais a isso).

Curiosamente, nos faz pensar que, assim como a dança, brincadeirinhas rotineiras meio bobocas também são uma forma de autoexpressão: de dizer ao outro “gosto de você”, “conte comigo” ou mesmo “te amo”, mas sem precisar recorrer o tempo todo a palavras – evitando tornar a relação algo pesado ou por demais piegas.

Subtexto infeliz

A diretora é um pouco menos feliz quando tenta inserir um subtexto político no longa, com críticas a algumas instituições da Argélia, sobretudo a polícia e a Justiça.





Não faria mal um pouco mais de didatismo nas cenas em que o filme menciona o processo de anistia a antigos terroristas, que hoje estão soltos. O rapaz que agride a protagonista é um deles.

E há certas cenas em que as reais intenções da diretora são indecifráveis. Quando ela mostra as rinhas de carneiros, parece inicialmente interessada em fazer uma denúncia da crueldade contra animais que ocorre nessas disputas nos bairros populares de Argel.

Mas existe um tom não repreensivo, por vezes até humorístico, na forma como ela apresenta esses combates. Não chegam a ser confrontos sanguinários – no máximo, os animais trocam cabeçadas –, mas fica notório que os bichos não estavam exatamente felizes em cena.
 
A diretora sabe lidar melhor com os humanos – as atrizes, sobretudo. É um filme sobre o feminino, mulheres que se viram muito bem sem a presença masculina na sociedade islâmica patriarcal.

A bela e expressiva protagonista Lyna Khoudri, que foi revelada pela própria Meddour em seu longa anterior, “Papicha” (2018), capitaneia o elenco com firmeza e graça. É, merecidamente, uma das atrizes mais destacadas de sua geração no cinema francês atual.  

“DANÇANDO NO SILÊNCIO”

• Argélia, 2003. Direção de Mounia Meddour. Com Amira Hilda Douaouda, Lyna Khoudri e Rachida Brakni.
• Em cartaz na sala 1 do Una Cine Belas Artes, às 14h50 e 18h40; na sala 1 do Centro Cultural Unimed-BH Minas, às 12h e 19h30; e na sala 4 do Ponteio, às 16h20 e 18h30.











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