Depois do período de incertezas e apreensão sobre as comemorações dos 60 anos da Fundação de Educação Artística (FEA), o horizonte se desanuviou a partir da virada de 2022 para 2023. A instituição, oficialmente criada em 8 de maio de 1963, celebra suas seis décadas a partir deste domingo (7/5), com um concerto especial.





A apresentação, que terá como destaque a soprano Nabila Dandara, chega quase como desagravo. A suspensão das atividades imposta pela pandemia e a inoperância do governo Bolsonaro no setor da cultura deixaram a FEA em situação financeira muito delicada, desprovida de recursos para cumprir compromissos elementares.
 
Em entrevista ao Estado de Minas no final de dezembro do ano passado, a pianista e diretora da fundação, Berenice Menegale, disse que o projeto para viabilizar o pleno funcionamento da escola estava travado na Secretaria Especial de Cultura do governo federal, por isso não havia garantia de patrocínios para 2023 relativos à comemoração dos 60 anos.

Com alívio, ela diz que a questão foi sanada. “Quando houve a mudança de governo e o Ministério da Cultura voltou a funcionar, eles fizeram um esforço hercúleo, porque havia milhares de projetos parados, e foi tudo resolvido. O projeto, aprovado pela Lei Rouanet, foi liberado e conseguimos captar”, informa.




 

Berenice Menegale anuncia concertos, exposição e disponibilização de acervos para comemorar os 60 anos da FEA

(foto: Alexandre Guzanshe EM/DA Press )
 

Domingo com Ravel e Vivaldi

O cerne da programação de aniversário será a série “Manhãs musicais”, que nasceu com a instituição. A ideia é realizar concertos mensais com nomes de destaque ligados à FEA. Na estreia, o programa reúne as peças “Chansons madécasses” e “Gaspard de la nuit”, de Maurice Ravel (1875-1937), e “Moteto – O qui coeli terraeque serenitas”, de Antonio Vivaldi (1678-1741).

Berenice observa que a escolha do repertório se orientou pela presença de Nabila Dandara – foi ela quem propôs as “Chansons madécasses”, que abrem o concerto, e o “Moteto”, que o fecha.

“Foi uma escolha feliz. Ravel é um compositor muito apreciado, muito amado, principalmente pelo ‘Bolero’. A obra que Nabila vai interpretar são três canções de Madagascar, três poemas que Ravel traduziu e musicou.”





Com relação a Vivaldi, ela destaca o grande alcance do compositor de “Quatro estações”. “Para unir as duas obras, vamos ter, no centro do programa, um tema de piano solo, ‘Gaspard de la nuit’, também de Ravel, que será executado por Jairo Thiersch, jovem pianista nosso, aqui de Belo Horizonte, muito talentoso”, destaca.

Berenice chama a atenção para a presença de Nabila Dandara, que comparece representando o corpo de ex-alunos da fundação. Trata-se da figura de maior realce no programa deste domingo (7/5). Nascida em Belo Horizonte, a soprano iniciou os estudos musicais em 2008, no Centro de Formação Artística da Fundação Clóvis Salgado (Cefart).

Depois, formou-se bacharel em música pela Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg) e fez na FEA, como bolsista, curso de aperfeiçoamento com Eládio Pérez-Gonzales, antes de investir na carreira internacional. Nabila completou recentemente sua  pós-graduação em canto lírico no Conservatório Benedetto Marcello, em Veneza, Itália, com nota máxima e menção honrosa.





“Ela fez cursos na Europa com muito brilhantismo. É artista de grande valor e uma pessoa de casa, muito amiga nossa, com quem sempre mantemos contato. Como viria para Belo Horizonte agora, a convidamos para esse programa, simbolizando todos os ex-alunos que estão brilhando no exterior, dos quais nos orgulhamos muito”, aponta Berenice.

“Vamos ter a oportunidade de aplaudir tanto a Nabila quanto o Jairo, mas também os músicos que vão acompanhá-la nas três canções de Madagascar e no ‘Moteto’ de Vivaldi”, ressalta.

Nas “Chansons madécasses”, a soprano se apresenta ao lado de Alberto Sampaio (flauta), Jayaram Márcio (violoncelo) e Arthur Versiani (piano). No tema de Vivaldi, vão acompanhá-la Leandro Lino e Mateus Figueiredo (violinos), Ciro Quaresma (viola), Matheus Macedo (violoncelo) e a própria Berenice (cravo), sob regência de Cacá Campara.




 

Pianista Eduardo Hazan vai interpretar peças de César Franck e Mozart no 'Manhãs musicais' especial, em junho

(foto: Olivia Loureiro/divulgação)
 

Eduardo Hazan: atração em junho

“Sou apenas um membro do conjunto que vai tocar Vivaldi com Nabila; o solo é dela”, diz a diretora da FEA. A próxima edição comemorativa da série “Manhãs musicais” está prevista para 4 de junho. “Vai ser com o pianista Eduardo Hazan, que também está na origem da FEA. É um dos sobreviventes, como eu”, diz Berenice.

O programa trará peças de César Franck (1822-1890) e Mozart (1756-1791) executadas por Hazan, acompanhado por outros músicos, e composição do polonês Witold Lutoslawski (1913-1994) para violino e violoncelo, que funcionará como intermezzo para a apresentação do pianista.

Várias atividades serão realizadas ao longo do ano para marcar as seis décadas da FEA. Berenice Menegale destaca a exposição, ainda sem data definida, relembrando toda a trajetória da instituição.





“Estamos reunindo toda a documentação relativa à fundação, papéis, gravações e registros audiovisuais para fazer mostra multimídia abrangendo toda a nossa história. O momento é de organização do material”, revela. Outra série, batizada “Eufonias”, vai ocorrer paralelamente às “Manhãs musicais”.

Como escola livre, a FEA desenvolve projetos em parceria com outras instituições para levar o ensino de música a jovens carentes e a locais onde o acesso à cultura é mais difícil. Com “Eufonias”, a ideia é contemplar esses parceiros.
 
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Pioneira e vanguardista

A história da Fundação de Educação Artística tem início a partir da inquietude de jovens instrumentistas em relação à educação e à prática musical na Belo Horizonte do início dos anos 1960. Para uma capital que avançava na modernidade, o ensino de música nas poucas orquestras e escolas soava anacrônico.





O pequeno grupo, formado pelos pianistas Berenice Menegale, Eduardo Hazan e Vera Lúcia Nardelli Campos, recém-chegados de estudos na Europa, ganhou o reforço do professor e maestro Sergio Magnani, dos pianistas Venício Mancini, Maria Clara Paes Leme e Lilly Kraft, da musicóloga Conceição Rezende, do violinista Leônidas Autuori, do clarinetista Salvador Villa e da professora de flauta doce Antonieta Salles.

A proposta era criar uma escola capaz de transformar radicalmente o ensino da música e atrair jovens para formação estética e cultural mais ampla. A FEA desbravou caminhos pouco explorados nas áreas pedagógica e artística.

O primeiro concerto da série “Manhãs musicais”, em 1963, dedicado a Béla Bartók (1881-1945), já indicava a ênfase na música do século 20.
 
“Desde o primeiro ano oferecemos concertos e eventos renovadores, fazendo com que Belo Horizonte se tornasse uma das cidades brasileiras mais interessadas e atualizadas em relação à música. Fizemos muitos eventos reunindo compositores latino-americanos, que tiveram muita repercussão e nos deixaram alguns de nossos acervos mais importantes”, recorda Berenice Menegale.





Ela destaca que, já em sua primeira década, a FEA participou da criação do Festival de Inverno da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em Ouro Preto, e contribuiu para a manutenção das cenas erudita, clássica e contemporânea do estado.

A FEA abrigou músicos que integravam a Orquestra da UFMG – a única em Belo Horizonte na década de 1960 – quando ela foi extinta. “Sabia-se que o Palácio das Artes, que estava sendo construído, teria uma orquestra própria, mas, a partir do fechamento da Orquestra da UFMG, alguns anos antes, os músicos ficaram sem trabalho aqui”, relembra.

Diante daquele cenário, a FEA criou uma orquestra de cordas e um quinteto de sopros para absorver músicos que partiam para outras capitais. “Não havia o Ministério da Cultura ainda, mas conseguimos o convênio com o Ministério da Educação que nos permitiu manter os músicos aqui durante uma temporada, até a criação da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais”, comenta.




 

Acervo de Eladio Pérez-Gonzalez, barítono e professor de canto que morreu em 2020, virá a público por iniciativa da FEA

(foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press/17/2/16)
 

Acervos digitalizados

Ao longo desses 60 anos, a FEA tem reunido preciosos acervos a ela destinados por seus fundadores, professores e artistas. Com o patrocínio do Fundo Estadual de Cultura, foi possível dar início à digitalização e disponibilização do material, a começar pelo legado de Sergio Magnani.

“O acervo que está sendo trabalhado agora é do Eládio Pérez-Gonzales, que é muito grande e demanda de  organização prévia à digitalização. Temos muito trabalho ainda pela frente. Outro em pleno andamento é o acervo latino-americano, objeto de pós-doutorado do professor Guilherme Paoliello. Ele será agora motivo de um trabalho de divulgação, com concertos a partir do segundo semestre”, adianta Berenice Menegale.

“MANHÃS MUSICAIS”

Concerto de abertura das comemorações dos 60 anos da Fundação de Educação Artística. Neste domingo (7/5), às 11h, na Sala Sérgio Magnani (Rua Gonçalves Dias, 320, Funcionários). R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada).


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