Ainda criança, antes de completar 10 anos, Wanderléa já soltava a voz em programas infantis da rádio Mayrink Veiga, no Rio de Janeiro. A garota, que posteriormente viria a ocupar o posto de musa da Jovem Guarda, passeava por gêneros diversos, mas dedicava atenção especial ao choro. Comumente, era acompanhada por um dos grupos mais importantes da época, o Regional do Canhoto.
Agora, prestes a completar 80 anos, ela revisita esse período e realiza um desejo que sempre alimentou ao longo da carreira, de gravar um álbum exclusivamente dedicado ao choro. Na próxima sexta-feira (12/5), chega às plataformas, com a chancela do Selo Sesc, “Wanderléa canta choros”, em que a eterna Ternurinha interpreta 11 clássicos do gênero e uma inédita, composta especialmente para esse projeto.
Com a tsunami que foi a Jovem Guarda, um dos grandes movimentos culturais de massa do país no século passado, o espaço para que ela pudesse expressar sua versatilidade como intérprete foi tolhido. Passada a onda que Wanderléa surfou ao lado de Roberto e Erasmo Carlos, foi possível um reencontro com outras vertentes da música brasileira – gravou nomes como Caetano, Gilberto Gil, Gonzaguinha, Sueli Costa e Egberto Gismonti.
DESEJO LATENTE Sua discografia posterior à Jovem Guarda também é pontilhada por alguns chorinhos, mas o desejo de gravar um álbum inteiro com foco no gênero seguiu latente. Essa lacuna é agora preenchida com um trabalho que traz temas como “Carinhoso”, de João de Barro e Pixinguinha, “Brasileirinho”, de Waldir Azevedo e Pereira da Costa, e “Pedacinhos do céu”, também de Waldir Azevedo e Miguel Lima.
“Como canto desde criança, passei por várias escolas e vários momentos da MPB – as cantoras do rádio, os cantores de bolero. Com a chegada da Jovem Guarda, tive que engolir a extensão de voz, cantar mais baixinho, que era o que aquelas músicas pediam. A Jovem Guarda foi tão arrebatadora que só depois que ela passou é que pude me dedicar a projetos diferentes para dar vazão à criatividade que mora dentro do meu peito”, diz Wanderléa.
Ela conta que o álbum dedicado aos choros que agora vem à luz começou a tomar forma concreta durante a pandemia. “Foi um período em que tive a oportunidade de ficar sossegada, pensando nos meus projetos, na minha trajetória, e me deu vontade de resgatar coisas que eu cantava quando criança”, explica.
CHORO NA HOLANDA No ano passado, ela viajou para a Holanda para visitar uma de suas filhas, Yasmim Flores, e acompanhar o nascimento de sua segunda neta, Gaia. O genro de Wanderléa, o músico e arranjador Angelo Ursini, é professor da unidade da Escola Portátil de Música – criada no Rio de Janeiro em 2000 por instrumentistas de choro – no país europeu. Com isso, ela pôde fazer, fora do Brasil, uma imersão no gênero.
“Fiquei surpresa com a quantidade de jovens cursando aulas de choro na Holanda. É um gênero que chega no mundo inteiro, e aqui no Brasil ainda é uma coisa de nicho. Não é algo que a juventude sabe como é feito, como é articulado. O chorinho é o clássico da MPB, tem origens ainda em meados do século 19. Músicos como Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth disseminaram essa mistura do erudito com os ritmos populares brasileiros”, aponta.
Ela diz que comentou com a filha sobre a vontade que nutria de fazer um disco só de choros e voltou ao Brasil ainda mais determinada a levar a ideia adiante. Depois foi a vez de Yasmim vir ao país e, como estava precisando de um pandeiro, saiu à procura de um na companhia de Roberta Valente, percussionista à frente do grupo Ó do Borogodó, com que Wanderléa vinha se apresentando ocasionalmente desde 2014.
PONTAPÉ “Minha filha comentou com Roberta que eu tinha vontade de fazer um disco de choros e ela falou: ‘Vamos fazer’. Daí começamos a aglutinar os músicos para esse projeto, fazer a seleção e ensaiar várias músicas para ver o que se adaptava à minha voz”, detalha Wanderléa. A primeira pessoa chamada, conforme diz, foi Luiz Nogueira, que assumiu a direção artística do álbum e apresentou a ideia para Danilo Santos Miranda, diretor do Sesc São Paulo.
Miranda destacou que “Wanderléa se entrega, com dedicação e conhecimento, a esse gênero fundador, marcado por uma mistura entre o erudito e o popular e pela genialidade de seus instrumentistas na criação e na execução das composições”, e que “a homenagem de Wanderléa ao choro enriquece o repertório da cantora e valoriza um gênero musical centenário, em constante renovação”.
Além de Nogueira, o time envolvido na feitura de “Wanderléa canta choros” inclui Mario Gil, que responde por direção e produção musical; o marido da cantora, Lalo Califórnia, que fez a mixagem; a própria Roberta Valente, à frente da pesquisa de repertório; sete diferentes arranjadores – Cristóvão Bastos e Toninho Ferragutti, entre outros – e instrumentistas gabaritados, como Zé Barbeiro, Alessandro Penezzi e Milton de Mori.
MEMÓRIAS AFETIVAS Quem também marca presença é Hamilton de Holanda, como convidado especial no primeiro single do trabalho, “Delicado”, de Waldir Azevedo e Ary Vieira, lançado na última sexta-feira (5/5). Wanderléa observa que, mesmo com toda a tradição do choro no Brasil, foram poucos os álbuns na história da MPB dedicados à vertente cantada do gênero. Ela diz que, pensando nisso, as letras também tiveram um peso na escolha do repertório.
“Busquei memórias afetivas, da infância. Incluí, por exemplo, uma faixa, ‘Galo garnizé’ (Luiz Gonzaga, Antônio Almeida e Miguel Lima), que eu, quando criança, achava muito divertida a letra. Tem outra, ‘Doce melodia’ (Abel Ferreira e Luiz Antônio), que fala de uma menina que recebe uma cantada de um chofer de táxi e sai com ele em devaneios pelo Rio de Janeiro. Tem letras com coisas engraçadas, e isso pautou um pouco a seleção”, destaca.
Sobre a faixa inédita do álbum, “Um chorinho para Wandeca”, de Douglas Germano e João Poleto (que também é um dos arranjadores), ela diz que foi um presente. “Eu lamentei que não ia ter nenhuma música inédita e eles me fizeram essa surpresa. A letra, no final, diz que ‘se você pensa que eu vou me despedir/ rá, se aquieta / acabei foi de começar’, que tem tudo a ver. Minha vontade de diversificar sempre foi latente e vou seguir nesse caminho”, avisa.
DIFERENTES ARRANJADORES Ela diz que a ideia de trabalhar com diferentes arranjadores partiu de Mario Gil e de Luiz Nogueira. “A gente pensou que uma determinada música ficaria bem nas mãos de um arranjador e outra, nas mãos de outro. ‘Carinhoso’, por exemplo, tem muito a cara do Cristóvão Bastos”, diz.
O fato de o álbum ter sido gravado ao vivo, com todos os músicos presentes no estúdio, tocando juntos, também é um diferencial, segundo a cantora. “Foi um encontro maravilhoso, não teve isso de um gravar sem o outro. Eu estava ali, com as letras na mão, cantando os arranjos que eles me trouxeram na hora. Fomos muito felizes na realização desse projeto e essa alegria, essa confraternização, transparece no disco”, afirma.
Ela também destaca a adesão de todos os envolvidos e a forma como mergulharam no projeto – o marido Lalo e Mario Gil cuidando da mixagem; a outra filha, Jade, a cargo da produção-executiva; e os músicos e arranjadores dedicados à construção das bases. “Fui muito carinhosamente abraçada por pessoas queridas, afetuosas, muito próximas de mim, o que me deu liberdade para fazer um trabalho completamente à vontade, descontraída”, diz.
AVENTURA DESAFIADORA Wanderléa entende que incursionar pelo gênero popularizado por Chiquinha Gonzaga, Ernesto Nazareth e, a partir do século 20, por Pixinguinha, Jacob do Bandolim e Waldir Azevedo, entre outros, é uma aventura desafiadora. Ela chama atenção para a necessidade de se ter domínio sobre uma divisão bem acentuada e uma articulação vocal afiada, além do fôlego para cantar ligeiro e, muitas vezes, sem pausa.
Para quem traz essa bagagem da infância, no entanto, foi mais uma delícia do que uma dor, conforme diz a cantora. “Não teve drama, foi como curtir uma brincadeira de criança, de cantar ligeirinho. Hoje, com esse resgate afetivo, realizo um sonho trazendo minha contribuição com autores pioneiros na criação desse ritmo que tanto valoriza nossa cultura nacional”, diz.
Ela sublinha a relação atávica com o gênero: “O choro me encantou desde pequena. Quando ouvia Ademilde Fonseca, articulando com extrema maestria a poesia daqueles versos, que se encaixavam com perfeição na sonoridade daquele repertório musical, era tudo muito mágico e eu, ainda bem menina, me divertia tentando acompanhar, dentro do malabarismo e da beleza daquelas lindas melodias”.
SHOWS Para celebrar um momento tão aguardado em sua carreira, Wanderléa preparou um show de lançamento que estreia no próximo dia 20, no Sesc Pinheiros, em São Paulo, e segue para Santos, no dia 26. Ela estará acompanhada por Zé Barbeiro (violão de 7 cordas), Alessandro Penezzi (violão), Fabricio Rosil (cavaquinho), Milton de Mori (bandolim), João Poleto (flauta), Alexandre Ribeiro (clarinete), Roberta Valente (pandeiro) e Douglas Alonso (percussão).
A ideia é apresentar, no show, a íntegra do repertório do álbum, complementando o roteiro com sucessos de carreira que estão descolados da Jovem Guarda. “Vou incluir coisas que fiz posteriormente ao movimento, e que têm alguma relação com o universo do chorinho, quer dizer, é um show temático mesmo, para mostrar essa minha faceta”, diz a cantora.
Ainda sem uma agenda definida, ela diz que a intenção é circular, pelo menos, pelas capitais do país. “Existe esse desejo meu e da minha filha Jade de rodarmos com esse show, porque é um momento importante da minha carreira. Só tenho a agradecer ao Selo Sesc, aos músicos envolvidos e aos autores das canções, que me permitiram reproduzir essas obras. É um aceno meu ao que a gente tem de mais remoto em termos de referência da MPB”, ressalta.
l “WANDERLÉA CANTA CHOROS”
l 12 faixas
l Selo Sesc
l Disponível nas principais plataformas de streaming e no Sesc Digital a partir da próxima sexta-feira (12/5)
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