Rainha do Rock Brasileiro, Rita Lee foi muito mais do que mera roqueira. Certa vez, a cantora e compositora tachou de “cafona” esse reinado do rock que lhe deram – preferia ser a “Padroeira da Liberdade”. Rita morreu nessa segunda-feira (8/5), aos 75 anos, em São Paulo.
Com efeito. Ao longo de sua carreira, iniciada aos 19 anos, a paulistana transitou pelo rock, MPB, pop e bossa nova. Cantou com João Gilberto (1931-2019), a convite dele, e gravou com o gênio baiano. Foi tropicalista e deixou sua marca registrada no cancioneiro romântico nacional.
Tropicalista de carteirinha
De ascendência norte-americana e italiana, Rita começou a carreira musical na banda Os Mutantes, expoente da Tropicália, movimento liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil que revolucionou a cultura brasileira nos anos 1960.
No disco de estreia dos Mutantes, lançado em 1968, ela participou da composição de cinco das 11 faixas. A garota loura não era, definitivamente, coadjuvante dos irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias. Rita foi coautora de “O relógio”, “Senhor F”, “Trem fantasma”, “Tempo no tempo” e “Ave Gengis Khan”.
Quando o grupo lançou o LP “Mutantes” (1969), Rita contribuiu em nove das 11 faixas. Grande parte delas em parceria com Arnaldo, com quem se casaria em 1971.
A parceria se manteve no álbum “Mutantes e seus cometas no país dos baurets”, no ano seguinte.
Em 1972, Rita se separou de Arnaldo e, em seguida, foi convidada a se retirar da banda.
“O grupo rompeu por vários motivos. O Gil e o Caetano tinham sido exilados. Nossos gurus tinham ido embora. Falei para fazermos nosso som. Afinal, eles tinham nos ensinado tudo. Ensinaram a compor em português, fazer arranjo, cantar o Brasil. Mas o pessoal da banda decidiu ir para outro lado. Decidiram fazer música progressiva tipo Yes, Emerson, Lake & Palmer. Eles eram ótimos músicos e eu era a intuitiva da coisa.
Eu achava que podia tocar por intuição. Comprava meus tecladinhos e tudo. Mas aí não podia. Tinha de ser uma coisa mais técnica”, contou Rita em entrevista ao programa “Gente de Expressão”, da extinta TV Manchete.
“Aí, de repente, eles me convidaram a me retirar dos Mutantes. Comigo, acho que saiu o humor”, afirmou ela. Tampos depois, drogas e problemas psicológicos levaram Arnaldo a se atirar da sacada de um hospital onde estava internado, em 1982.
“O Arnaldo sempre foi o mentor dos Mutantes”, disse ela à Manchete. “Mas, na verdade, o Sérgio Dias e o Dinho Leme eram excelentes também. Eu era excelente também! (risos). Depois que os Mutantes terminaram, comecei meus próprios shows.
Aí o Arnaldo aparecia na primeira fila e ficava fazendo sinal de negativo para mim. Dizendo que estava odiando. Ele me dinamitava. Eu já não tinha muita segurança. Ele tinha um lado louco. Eu não sabia até que ponto ele gostava de mim com uma obsessão ou se era uma competição”.
Fato é que Rita foi ao hospital, chorando, quando o ex ficou entre a vida e a morte. Mas não fez segredo da relação conturbada com o ex-marido. Arnaldo “vende sua imagem de coitadinho, tão apreciada pelas viúvas e críticos de música”, escreveu a cantora em “Rita Lee: Uma autobiografia”, lançado em 2016 pela Globo Livros.
Com Lucinha e Tutti-Frutti
A ex-mutante montou a banda Tutti Frutti com a amiga Lucinha Turnbull, cujas primeiras apresentações foram mornas. “Atrás do porto tem uma cidade” (1974), álbum de estreia do grupo, não causou maiores impactos.
Mas as coisas mudaram com “Fruto proibido” (1975), LP que chamou a atenção para Rita Lee. “Agora só falta você”, “Esse tal de roque enrow” e “Ovelha negra”, faixas do álbum, se tornaram clássicos do rock nacional.
“Se não cantar ‘Ovelha negra’, não me deixam sair do palco”, brincou ela em entrevista ao Estado de Minas, em 2011.
Em 1976, começou o relacionamento de Rita com Roberto de Carvalho, com quem ficou casada até o fim da vida. Foi com ele que a cantora e compositora passou a se apresentar depois que o Tutti Frutti se dissolveu, em 1979.
Na prisão com Elis
Em 1976, Rita foi presa com as empresárias e oito integrantes do Tutti-Frutti. De acordo com a versão da polícia, agentes foram à casa dela depois de receber denúncias sobre uso de drogas, encontrando 300g de maconha, restos de cigarros e um narguilê.
Rita, porém, garantiu que tudo não passou de armação do governo militar, pois não usava drogas e havia parado de fumar porque estava grávida de três meses de Beto Lee.
O juiz, convencido pela promotoria de que a cantora feria a “moral e os bons costumes”, condenou-a à prisão com o intuito de dar “exemplo para a juventude”.
Na cadeia, Rita recebeu apoio de muita gente. Elis Regina foi visitá-la, levando pela mão o filho João Marcello Bôscoli.
“Na época dos festivais da Record, Mutantes e Tropicalismo, Elis passava pela gente virando a cara. Ela fez parte daquela passeata contra a guitarra elétrica na música brasileira. A última pessoa que esperava que fosse me visitar na cadeia era a Elis”, contou Rita na live com o amigo Ronnie Von, em 2020.
“Quando o carcereiro falou: 'Ô, Ovelha Negra, tem uma cantora famosa rodando a baiana, dizendo que vai chamar a imprensa. Ela quer te ver'. Fiquei esperando, não sei, uma Nossa Senhora do Rock, e, de repente, vejo a Elis com o João Marcelo. Ela soltou a mão do filho e me deu um abraço. Perguntou como eu estava, disse que estava muito magra. Aí começou a falar duro com os policiais: 'O que vocês estão fazendo com ela?'", relembrou Rita.
“O que ela berrou, o que ela aprontou lá dentro! Você pensa que os caras falavam alguma coisa? Não falavam nada. Ela, baixinha, cobrando: 'Eu quero um médico já.
Se não vier já, chamo a imprensa'. Ninguém mexia com a Elis. Ela era do Olimpo. Que mãezona! Mandou que comprassem comida para mim, deu dinheiro e ainda pediu troco (risos). Me ajudou como se fosse uma amiga de infância.”
Rita não ficou muito tempo na cadeia. No oitavo dia de reclusão, apresentou-se à 20ª Vara Criminal para o julgamento. Foi condenada a um ano de prisão domiciliar e multa de 50 salários mínimos.
Liberada para sair de casa a partir das 7h, não podia ser vista na rua após as 19h. Eventualmente, podia fazer shows durante a noite, mas tinha de se submeter a exames toxicológicos depois de se apresentar.
Durante a prisão domiciliar, compôs “X 21”, inspirada em seus dias de cárcere (a cela se chamava Xadrez 21). A canção foi proibida pela censura.
Depois de cumprir pena, seguiu carreira com o Tutti Frutti. Em 1977, lançou com Gilberto Gil o disco “Refestança – Gilberto Gil e Rita Lee ao vivo”, gravado a partir da série de shows que os dois fizeram juntos com as respectivas bandas (Tutti Frutti e Refavela). O disco foi o primeiro com a participação de Roberto de Carvalho, recém-aceito como tecladista do grupo.
O rompimento do Tutti Frutti ocorreu em 1979, quando o guitarrista Luís Sérgio Carlini, responsável por registrar o nome, decidiu abandonar os companheiros e levar a marca Tutti Frutti para seu novo projeto.
Dupla de sucesso com Roberto
Restou a Rita a partir para nova jornada com o marido. Foi um estouro. Ela e Roberto lançaram o álbum “Rita Lee” (1979), com os hits “Mania de você” e “Arrombou a festa II”. No ano seguinte, outro disco intitulado “Rita Lee” chegou cheio de sucessos – “Lança-perfume”, “Caso sério” e “Ôrra meu”.
Em 1980, a cantora recebeu um convite inusitado. A TV Globo preparava um episódio da série “Grandes nomes” em homenagem a João Gilberto.
O pai da bossa nova, sem ter qualquer contato com ela, ligou e a convidou para gravarem “Jou jou Balangandans”, de Lamartine Babo.
Pensando se tratar de trote, Rita não deu a menor confiança. Por pouco, não desligou o telefone na cara de João. Só se convenceu de que realmente falava com João Gilberto quando ele, com aquele jeito minimalista de cantar, começou a interpretar “Chega mais” ao telefone.
Não havia mais dúvidas. Era, de fato, João do outro lado da linha. Mesmo insegura, ela aceitou o convite.
Da década de 1980 a 2000, a carreira foi de vento em popa. No LP “Rita e Roberto” (1982), o casal sorridente parece estar dentro do mar. Vieram “Flerte fatal” (1987), “Zona zen” (1988), “Santa Rita de Sampa” (1997) e “Acústico Rita Lee” (1998), entre outros álbuns.
Rita Lee vendeu mais de 55 milhões de discos, ganhou o Grammy Latino de Melhor álbum de rock em língua portuguesa com “3001” (2001). Anos depois, em 2022, foi homenageada na cerimônia do Grammy Latino, nos Estados Unidos, por sua contribuição à música.
A face feminista de Sampa
Com sua língua afiada, personalidade forte e espírito libertário, Rita é a mais completa tradução da cidade de São Paulo, conforme escreveu Caetano Veloso em “Sampa”. Desde muito jovem, ela deixou claro em suas composições o apoio à independência feminina. Durante a ditadura militar, não se dobrou ao conservadorismo.
“Eu hoje represento a loucura/ Mais o que você quiser/ Tudo que você vê sair da boca/ De uma grande mulher/ Porém louca!”, cantou ela em “Luz del fuego” (1975). “Toda mulher é meio Leila Diniz”, decretou em 1993.
Violência sexual
Em 2013, Rita anunciou a aposentadoria dos palcos. Mudou-se para um sítio com o marido, em São Paulo, para “viver em paz e de forma anônima”.
Contudo, em 2016 voltou aos holofotes para lançar “Rita Lee: uma autobiografia”. No livro, revelou ter sofrido violência sexual aos 6 anos.
Em 2021, ela mandou para as plataformas o single “Change”, parceria com Roberto.
Em 2022, juntou-se ao marido e ao filho Beto Lee para compôr “Caos”, faixa do álbum “Olho furta-cor”, dos Titãs, banda em que Beto toca.
Ano passado, Rita anunciou em suas redes sociais que estava totalmente curada do “Jair” – nome dado ao câncer no pulmão diagnosticado em 2021, alusão ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Em remissão desde então, a cantora continuava a batalha para se recuperar das limitações que os tratamentos contra a doença haviam causado em seu corpo.
Aos 75 anos, a artista veio a falecer em sua residência, em São Paulo, no fim da noite de ontem (8/5). Rita Lee deixa o marido e três filhos, Beto, João e Antônio.
DISCOS
COM OS MUTANTES
Os Mutantes – 1968
Tropicalia ou Panis et circencis – 1968
Mutantes – 1969
Jardim elétrico – 1971
Mutantes e seus cometas no país do baurets – 1972
COM TUTTI-FRUTTI
Atrás do porto tem uma cidade – 1974
Fruto proibido – 1975
Entradas e bandeiras – 1976
Babilônia – 1978
COM GILBERTO GIL
Refestança – 1977
COM ROBERTO CARVALHO
Rita Lee – 1979
Rita Lee – 1980
Saúde – 1981
Rita Lee e Roberto de Carvalho – 1982
Bom Bom – 1983
Flerte Fatal – 1987
Zona zen – 1988
Rita Lee em Bossa'n Roll – 1991
Rita Lee –1993
Love Lee Rita – 1996
Santa Rita de Sampa – 1997
Acústico MTV – 1998
3001 – 2000
Aqui, ali em qualquer lugar – 2001
Balacobaco – 2003
MTV ao vivo Rita Lee – 2004
Multishow ao vivo – 2009
Reza – 2012