Poucos nomes da música têm uma trajetória com fases tão distintas – e igualmente marcantes – como Rita Lee Jones. Surgiu nos anos 1960 com Os Mutantes, um dos grupos mais inventivos da história do rock, se estabeleceu na década seguinte como a maior estrela brasileira do gênero e, já na década de 1980, abraçou o pop e se tornou uma máquina de produção de hits. Somente esses três movimentos já seriam suficientes para imortalizar a cantora e compositora. Mas ela foi muito além. Defendeu, nas letras e nas atitudes, a liberdade feminina para criar, ousar, amar, transar, não se levar a sério, se divertir, se insurgir. “Desacatar a autoridade masculina é o máximo”, chegou a declarar, em entrevista.
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Face angelical e voz suave das loucuras lisérgicas que aprontava com os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, Rita Lee não sumiu após a saída tempestuosa de Os Mutantes. Muito pelo contrário: assumiu outra banda, Tutti Frutti, fez quatro discos (“Atrás do porto tem uma cidade”, “Entradas e bandeiras”, “Babilônia” e, especialmente, “Fruto proibido”) que se tornaram marcos do rock nacional nos anos 1970. As guitarras cruas e furiosas de Luís Sérgio Carlini, à la Rolling Stones, e o baixo pulsante de Lee Marcucci emolduravam as letras cada vez mais inspiradas da cantora que consolidava, assim, a vertente roqueira explicitada em “Agora só falta você”, “Esse tal de Roque Enrow” e na balada “Ovelha negra”, hino de uma geração.
Sem medo de represálias, Rita Lee fez da música o exercício da paixão e da liberdade. Ergueu trincheira particular contra o autoritarismo, o machismo e a caretice vigentes nos últimos anos da ditadura militar. Qual compositora teria coragem de submeter à censura versos como “Me deixa de quatro no ato”? Ela teve. A mesma Rita que, depois de todas as viagens alucinógenas dos anos 1960 e 1970, anteciparia o lema de um novo começo de era ao bradar: “Quero mais saúde”. E que falou sobre menstruação (“Mulher é bicho esquisito, todo mês sangra”) no tema de abertura (“Cor de rosa choque”) de um programa matinal (“TV Mulher”) na tevê aberta. Por isso, a definição de “rainha do rock” reduz as múltiplas dimensões de Rita Lee.
Ela exerceu muito mais do que a soberania de um gênero musical. Rita foi rock, pop, bossa, bolero, chanson française, psicodelia, farra e fanfarra, cinema e novela, garota moleca e vovó sapeca, Jagger & Richards, Gil & Caetano, Carmen Miranda & Leila Diniz. Com talento inigualável para imitar vozes e criar personagens, Rita era capaz de interpretar todas as mulheres do mundo.
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Nas últimas décadas, os sucessos vieram em menor quantidade, mas os projetos de revisão da carreira – “Bossa’n’roll”, “Acústico MTV”, remixes e celebrações – ajudaram a consolidar a cantora como referência obrigatória das novas gerações. Mesmo afastada dos palcos até a morte em maio de 2023, continuou a desafinar o coro dos contentes com observações perspicazes e irônicas em programas de tevê e nos livros que lançou. Foi vista, lida e relida. Virou meme e musa. Tudo porque, como escreveu em “Luz del fuego”, Rita representou a loucura e tudo mais o que quis. Cheia de graça, fazendo um monte de gente feliz, amanhã e sempre.
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