Atriz adolescente está de costas num píer diante de imensa lagoa no filme A primeira morte de Joana

Letícia Kacperski em cena de "A primeira morte de Joana": exteriores são o forte do filme dirigido por Oliveira

Bruno Polidoro/divulgação

O argumento é um ponto forte de  “A primeira morte de Joana”. Nele, uma garota que acaba de chegar à adolescência (Joana) enfrenta o primeiro drama de uma morte em família. Ela se dava bem com a tia Rosa e lamenta o fato, mas o essencial não está aí.

Num momento em que Joana começa se interessar por coisas como beijar e namorar, a tia se tornará um mistério, pois nunca teve, todos dizem, um só namorado. Nunca beijou ninguém, muito menos casou.
 
Por um lado, isso se torna assunto de conversa com sua amiguinha Carol. Por outro, o filme nos leva a conhecer uma família em que as meias-palavras e os não ditos são moeda corrente. Uma família de mulheres, aliás: a mãe e a avó. Com esses pequenos mistérios Joana terá de lidar, mas o que a interessa de verdade é a história da tia.
 
 

A subtrama é ambiental – elas moram no Sul, em um lugar onde se instalam os grandes cataventos para a produção de energia eólica. É um lugar de ventos fortes, sem dúvida. E de natureza muito presente: está no vento, mas também na água, nos bosques. Esses lugares que as duas meninas frequentam quando se veem livres das opressões da família, da escola e da religião.

Será de esperar, desde então, e dadas as relações íntimas entre as mocinhas, e sendo o filme brasileiro, que ele se encaminhe para mais uma defesa e ilustração da homossexualidade. Essa é a convenção do filme médio brasileiro.

Bem, pode-se dizer que “Joana” dribla bem o problema. É sutil ao mencionar a ambiguidade sexual da delicada Joana. Quando ela, irritada com a brincadeira de um menino, lhe dá um soco no estômago, a professora toma as dores do garoto. Em seguida será dito que dar soco no estômago dos outros “não é coisa de menina”.

Exteriores em foco

A ação se passa mais para o começo do século 21, mas naquele interior sulino parece ter parado há muito. Talvez por isso o roteiro pareça tão mais fraco nos interiores: cada cena parece buscar o ambiente e as palavras autênticas.

Essa necessidade de afirmar a autenticidade, que passa em grande medida pela fala, enfraquece a imagem e, de cara, joga as cenas no convencionalismo paradoxalmente pouco convincente.

Os exteriores, ao contrário, são o lugar privilegiado da trama e, aparentemente, onde o talento de Cristiane Oliveira, diretora do filme, floresce. 

Seja nos exteriores da casa de madeira, na água, no vento, no estranho oratório no meio da floresta, nos grandes cataventos, ali o filme se afirma.
 

Há mais um local: a estrada, com sua faixa central amarela. A estrada que leva aos cataventos. Limite que a mãe de Joana não permite que a filha ultrapasse. Veremos que a coragem de enfrentar o perigo da estrada levará a jovem mais longe.

À relação lésbica com a amiguinha? Pode até ser. Mas “Joana” tem o enorme bom senso de evitar a habitual histeria de nossos filmes em torno do tema e tratá-lo com discernimento e delicadeza. Acredito não arruinar o prazer de ninguém que veja o filme se disser que Oliveira conclui por não concluir nada em definitivo a respeito das escolhas sexuais das duas amigas – podem no futuro se afirmar LGBTQIA+ ou não.

Têm a vida pela frente para perceberem qual é a orientação de cada uma sem que pastores, pais, professoras e pais de santo venham se meter em suas vidas. É uma lufada de ar para as garotas, de que os cataventos parecem ser uma boa metáfora. 

ENTREVISTA

"A vontade de ouvir me guiou", diz a cineasta Cristiane Oliveira



No preparo do elenco, pesaram cuidados especiais pelo tema de “A primeira morte de Joana?”
Ambas atrizes adolescentes estavam na faixa etária das personagens. Assim que escolhidas, formamos um grupo de diálogo conjunto com os pais sobre as temáticas do filme, para escutarmos as experiências um do outro. E essa vontade de ouvir me guiou também na direção: não dei o roteiro a elas num primeiro momento. Eu contava das situações e ouvia o que elas tinham a dizer a respeito, debatíamos como a personagem reagiria e escrevíamos as falas como elas falariam.

Há alguns traços de filmes clássicos de Ingmar Bergman no seu novo longa?
Não foi uma referência direta, mas admiro como Bergman mergulha na intimidade humana. Escrevo sempre buscando trazer o espectador para junto dos conflitos internos dos personagens. Outra conexão com Bergman talvez seja a relação do humano com a religiosidade. Nomes que estiveram presentes em minhas trocas com o fotógrafo Bruno Polidoro (premiado em Gramado) foram Dorota Kedzierzawska e Krzysztof Kieslowski.

Que nível de autenticidade se exigiu para filmar cenas em um terreiro?
Rodamos num terreiro real, com seu grupo agindo como de costume. E, no sentido de preservar os mais velhos com sensibilidade para “receber” as entidades, foram eles que escolheram quem representaria o momento-chave: alguém com experiência para saber o que ocorre com o corpo, mas com o controle para não “receber” de fato, pois havia o risco. Definimos antes as músicas para o técnico de som saber a quem microfonar. A partir daí, a câmera dançou livremente com eles. (Ricardo Daehn/Correio Braziliense)