Quando escreveu “Raízes do Brasil”, em 1936, Sérgio Buarque de Holanda cunhou o termo “homem cordial” para se referir ao brasileiro. Para ele, faz parte do caráter nacional a passionalidade em detrimento da razão.
Foi ao historiador paulista que o diretor Iberê Carvalho recorreu para escolher o título de seu novo longa, que estreou na última quinta-feira (11/5), e está em cartaz no Una Cine Belas Artes e no Centro Cultural Unimed-BH Minas.
Estrelado por Paulo Miklos, “O homem cordial” se passa numa única noite, em São Paulo, e acompanha Aurélio, roqueiro que fez grande sucesso nos anos 1980. A banda que o alçou ao estrelato havia se desmanchado, mas agora está de volta à ativa.
Vaias e garrafas no palco
No primeiro show – uma das primeiras cenas do filme –, o grupo não agrada ao público, que começa a vaiá-lo, jogando garrafas e copos em Aurélio.
O motivo da fúria é o vídeo que circula nas redes sociais, no qual Aurélio impede que os ditos “cidadãos de bem” linchem uma criança na periferia de São Paulo. O garoto Mateus é acusado, sem provas, de roubar o celular da senhora num bairro rico paulistano. Durante o incidente, morre um policial.
A íntegra do vídeo não é compartilhada com os espectadores do longa. O cineasta Iberê Carvalho optou por soltar apenas alguns trechos, no intuito de sugerir ao espectador o desenrolar da confusão envolvendo Aurélio. Entrelaçando cenas da tentativa de linchamento com as agressões sofridas pelo músico no palco, o espectador começa a entender do que se trata.
Obrigado a terminar a apresentação mais cedo, Aurélio segue com os colegas de banda para um restaurante. No entanto, é convidado a se retirar do local. O proprietário alega que não quer causar “confusão” no estabelecimento.
Ofendido e sem entender o processo de cancelamento que vivencia, Aurélio segue para a van da banda, no intuito de ir para casa. No caminho entre o restaurante e o veículo, um grupo de influencers o aborda, cobrando dele explicações por “defender bandido”. Pior: responsabiliza o cantor pela morte do policial.
Enquanto Aurélio é assediado pelos influenciadores digitais, um dos integrantes de sua banda sofre parada cardíaca, o que põe fim à confusão. Aurélio segue na van, mas esquece o celular e se vê incomunicável em plena madrugada de São Paulo, andando a esmo.
Na porta da casa do músico, várias pessoas protestam, acusando-o de ser responsável pela morte do policial. Aurélio encontra uma jornalista disposta a ajudá-lo, que o leva ao endereço de um velho amigo na periferia, interpretado pelo rapper e ator Thaíde. Aurélio espera encontrar ali algum consolo.
Resultado: o defensor do garoto linchado acaba entrando, sem querer, numa espiral de violência da qual custa a sair.
“É tudo muito rápido”, destaca o brasiliense Iberê Carvalho, que também dirigiu os longas “O último cine drive-in” (2015) e “Entre cores e navalhas” (2007).
“Primeiro, Aurélio é obrigado a parar o show, depois ele é expulso do restaurante, agredido na porta e vê o amigo sofrendo um ataque do coração. Aí, já está sozinho, não consegue mais chegar em casa e vai reencontrar um velho amigo na periferia. Em menos de 10 horas acontece tudo. A espiral de tensão e violência vai aumentando ao longo do filme”, resume.
Redes sociais
Toda essa velocidade não ocorre por acaso. A rápida sucessão de fatos, explica o diretor, é alusão ao que a humanidade tem experimentado nos últimos anos, com a ascensão das redes sociais que bombardeiam o mundo de informações, boa parte delas fake news.
Ao contrário do que sugere o título do filme, não é bem Aurélio o “homem cordial” definido por Sérgio Buarque de Holanda. Quem assume o arquétipo são as pessoas que assediam e agredem o cantor.
“Aurélio vai nos conduzindo por essa noite e nos faz esbarrar com um monte de homens cordiais, no sentido da passionalidade e de priorizar a emoção em detrimento da razão”, afirma Iberê.
“No entanto, Aurélio carrega um pouco da característica de ‘homem cordial’. (Alerta de spoiler) Se você for ver, quando o filme termina, por mais que ele esteja abalado com tudo o que aconteceu, continuou surfando na onda da fama, participando de programas na TV e se expondo”, pondera o diretor.
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Aurélio, de fato, não é livre da cordialidade “buarqueana”. No primeiro momento, o espectador é levado a acreditar que o protagonista age muito mais pela razão do que pela emoção ao defender o garoto acusado injustamente. No final do filme, quando a confusão que gerou o vídeo é esclarecida, percebe-se que Aurélio está mais para militante de ocasião, empenhado em defender seus ideais desde que não tenha de alterar sua rotina.
Filmado em 2018 e finalizado em 2019, “O homem cordial” demorou para ser lançado por dois motivos: a pandemia, que paralisou o setor cultural por dois anos, e o “apagão” ocorrido em órgãos federais ligados à cultura no governo Jair Bolsonaro.
“A expectativa era lançar o filme em 2020. Nós o inscrevemos numa linha de distribuição da Ancine, em 2019 recebemos a notícia de que tínhamos sido contemplados. Mas acabou que o dinheiro jamais saiu. Recebemos só agora, depois que mudou o governo”, diz o diretor.
Kikito em Gramado
Nesse meio tempo, “O homem cordial” participou de festivais no Brasil e no exterior. Conquistou o Kikito de melhor ator, dado a Paulo Miklos no Festival de Cinema de Gramado em 2019, e foi homenageado em Marseille, na França.
Apesar dos prêmios, Iberê enfrentou a apreensão causada pela demora do lançamento. Fiquei angustiado, pensando que se a gente demorasse muito para lançar, talvez já tivéssemos superado muita coisa das redes sociais que está no filme”, explica. “Olha que ingenuidade!”, conclui.
“O HOMEM CORDIAL”
• (Brasil, 2019, de Iberê Carvalho, com Paulo Miklos, Thaíde e Dandara de Morais). • Em cartaz no Una Cine Belas Artes, às 17h10 e 18h50, e na sala do Centro Cultural Unimed-BH Minas, às 20h30.