A relação de mais de uma década entre o produtor mineiro Alexandre Segundo e o cantor, compositor e baterista Wilson das Neves (1936-2017) tem rendido frutos preciosos. O mais recente é o álbum póstumo “Senzala e favela”, disponível nas principais plataformas de streaming, que foi lançado, com pompa e circunstância, em um grande show no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, na última terça-feira (9/5).
Com produção musical e direção artística assinadas por Jorge Helder e Alexandre Kassin, o trabalho reúne ao longo de 18 faixas – 11 delas inéditas – um portentoso time da MPB. Entre os intérpretes figuram, entre outros, Chico Buarque, Seu Jorge, Emicida, Zeca Pagodinho, Áurea Martins, Roberta Sá, Fabiana Cozza, Maria Rita, Ney Matogrosso e o próprio Wilson das Neves, em três faixas.
Na seção instrumental, comparecem Cristóvão Bastos, Jaques Morelenbaum, Armando Marçal, Pretinho da Serrinha, Kassin, Cláudio Jorge, Jorge Helder, Paulão 7 Cordas, Marlon Sette e Thiago Delegado, entre muitos outros.
Para se chegar a “Senzala e favela”, é preciso recapitular a história cujo início remonta a meados dos anos 2000, quando Alexandre Segundo era o responsável pela curadoria do Vinnil Cultura Bar, que funcionou na Savassi, em Belo Horizonte.
Entre 2005 e 2006, o mineiro estava às voltas com o projeto da cantora Ângela Evans, que recebia no Vinnil convidados de estados ligados ao universo do samba. “Ela me sugeriu os nomes de Wilson das Neves, Cristóvão Bastos e Monarco. Eu os convidei, e o primeiro a vir foi o Das Neves, como os amigos o chamavam. Foi amor à primeira vista. O cara era um gênio”, diz Alexandre, destacando que, a partir do momento em que conheceu o músico, resolveu mergulhar em sua obra.
Trânsito na MPB
O produtor conta que sua educação musical vem do avô, profundo conhecedor da MPB. “Me dei conta, depois, de que tudo aquilo que ouvia guiado por meu avô tinha a participação de Wilson das Neves. Como instrumentista, ele tocou em shows ou gravou com mais de 700 nomes da MPB, como Elizeth Cardoso, Elis Regina, Chico Buarque. Foram muitos anos com todos eles. De repente, tive o privilégio de conhecer o cara que estava tocando em todas aquelas músicas que me formaram”, diz.
Já a partir daqueles primeiros contatos com Wilson das Neves, Alexandre se ofereceu para contar a história dele. Com viagem marcada para a Europa, chegou a desistir de embarcar para abraçar a missão a que se propôs. Entre idas constantes ao Rio de Janeiro, entrevistas, pesquisas documentais, registros audiovisuais e outras ações, o produtor foi construindo um grande painel biográfico de Das Neves.
“Ainda não sabia o que esse material poderia gerar, se livro, filme, discos ou um programa de televisão. Fui apenas coletando informações. Passado um tempo, em 2009, contei para o Cristiano Abud, da Abuzza Filmes, sobre essa minha iniciativa. Ele topou encarar a saga de construir comigo essa história. Começamos, com recursos próprios, a trabalhar num documentário.”
Foi um périplo até chegar ao resultado final – o longa “O samba é meu dom”, lançado em 2017, exibido em diversos festivais e que pode ser visto no Globoplay, Now, Canal Brasil e Rede Minas. Alexandre conta que tentou de tudo – “Mega-Sena, macumba, Natura Musical, Petrobras, todos os editais” – para levantar os recursos necessários para realizar o filme.
“A gente já estava desanimando, mas nos inscrevemos no programa Rumos, do Itaú Cultural, e conseguimos o dinheiro. Falei: 'Ó, Wilson, a gente vai finalizar o filme'. Disse para ele que era boa deixa para também lançarmos um disco. Ele já tinha desenhado o repertório e começamos a trabalhar”, relembra.
A ideia inicial veio a partir de uma composição de Das Neves, “Senzala e favela”. Essa parceria com Paulo César Pinheiro trata da história do negro na construção do Brasil, marcada pelo racismo e pela desigualdade.
Se a leveza e mesmo a malandragem são marcas registradas de Wilson das Neves, “Senzala e favela” traz mensagem direta, pungente e sem concessões contra a força do racismo, afirma Alexandre Segundo.
A princípio, também por questão orçamentária, seriam dois discos – “Senzala”, que Das Neves gravaria tocando caixinha de fósforos, acompanhado apenas pelo violão do mineiro Thiago Delegado, e “Favela”, com banda.
“Chamamos o Kassin para produzir, resolvemos que Chico Buarque ia gravar com Wilson a faixa-título. Já estava tudo encaminhado, mas ele morreu dois dias antes de entrar no estúdio”, diz o produtor.
• Leia também: Documentário sobre a trajetória de Beth Carvalho mostra a importância da 'Madrinha' para o samba
Onze anos de amizade
Alexandre Segundo acompanhou Das Neves até a morte, 11 anos após se conhecerem. O destino final chegou aos 81 anos, pouco tempo depois de perder a mulher, Silvia. Com resignação, enfrentava um câncer sobre o qual não comentava nem com os amigos mais próximos.
“Eu já sabia do câncer. Me deu um clique, fui para o Rio de Janeiro e recebi do meu babalaô, que era o babalaô do Wilson também, o percussionista Zero, a notícia de que ele estava se entregando. Cheguei no quarto, conversei com ele, que sugeriu que chamasse a Áurea Martins para cantar. Disse que sim, chamaria, mas para um dueto com ele. Só que o estado de saúde foi piorando, fui para o hospital com ele numa sexta-feira, e Das Neves não resistiu”, conta o produtor.
Passados mais alguns anos, o projeto foi viabilizado por meio da parceria da Jataí, investidora inclusiva, com a Fundição Progresso, atuante há mais de 20 anos no cenário cultural do Rio de Janeiro. O álbum “Senzala e favela” veio à luz com a chancela do FundiSom, selo independente ligado à instituição carioca, criado com o apoio da Jataí.
Após a morte de Das Neves, o primeiro passo foi aglutinar intérpretes, músicos e arranjadores que participariam do disco. O produtor diz que os anos de convivência com o músico serviram para lhe indicar o caminho a ser percorrido na realização desse trabalho.
“Wilson foi um pai para mim, tanto na esfera da música quanto no âmbito pessoal. Ele me abriu muitas portas, me ensinou muito, me apresentou para todo mundo, me colocou num lugar que agradeço pelo resto da vida. Eu via o amor que as pessoas tinham por ele. Os amigos eram mais que amigos, eram uma família que ele ia construindo pelo mundo. Essa 'família' de Wilson das Neves foi meu ponto de partida: os amigos próximos, os músicos que tocaram com ele e com os quais ele tocou”, diz Alexandre.
Em parceria com o baixista Jorge Helder, cuja filha foi batizada por Das Neves, o mineiro foi fazendo uma costura. “Chamamos o Kassin, o Felipe Pinaud e o Marlon Sette, que trabalharam com o Wilson na Orquestra Imperial; o Cláudio Jorge, que o acompanhava em shows; Chico Buarque e Emicida, grandes parceiros e amigos do Wilson, para cantar a faixa título. E assim fomos montando o time”, aponta.
Selo e turnê
No momento, Alexandre Segundo atua em duas frentes. Uma delas é o desenvolvimento de novos projetos pelo selo FundiSom, com os nomes de Elton Medeiros, Delcio Carvalho, Cristóvão Bastos e Áurea Martins já engatilhados.
A outra é fazer com que “Senzala e favela” repercuta o máximo possível. Depois do lançamento no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, a ideia é que o show circule pelo Brasil e pelo mundo, conforme o produtor.
“Ficou comigo a missão de levar a história adiante. O show vai circular. Vou levar a palavra de Wilson para o mundo. Depois do processo do filme, do disco e do primeiro show, vou correr atrás de recursos para rodar pelo Brasil e pelo mundo com uma banda luxuosa: Marçal, Jorge Helder, Cristóvão Bastos. A banda dos sonhos de qualquer músico”, conclui.
FAIXA A FAIXA
“Se você não me levar”
De Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro
• Intérprete: Wilson das Neves
“Que beleza de nega”
De Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro
• Intérprete: Seu Jorge
“Embarcação”
De Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro
• Intérprete: Áurea Martins
“Sem porto”
De Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro
• Intérprete: Zeca Pagodinho
“Senzala e favela”
De Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro
• Intérpretes: Chico Buarque e Emicida
“O dia em que o morro descer e não for carnaval”
De Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro
•Intérpretes: Marcelo D2 e BNegão
“Café com leite”
De Moyseis Marques e Wilson das Neves
• Intérprete: Moyseis Marques
“Um novo amor chegou”
De Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro
• Intérprete: Ney Matogrosso
“O que é carnaval”
De Wilson das Neves e Cláudio Jorge
• Intérprete: Rodrigo Amarante
“Samba para João”
De Wilson das Neves e Chico Buarque
• Intérprete: Chico Buarque
“Transitória”
De Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro
• Intérpretes: Roberta Sá e Wilson das Neves
“Vou sair daqui”
De Wilson das Neves e Delcio Carvalho
• Intérprete: Zé Renato
“Duas vozes”
De Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro
• Intérprete: Fabiana Cozza
“Traço de giz”
De Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro
• Intérprete: Maria Rita
“Luz de candeeiro”
De Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro
• Intérprete: Áurea Martins
“Do que é capaz o tambor e o agogô”
De Wilson das Neves e Cláudio Jorge
• Intérpretes: Cláudio Jorge e Pretinho da Serrinha
“Rei de Oyó”
De Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro
• Intérpretes: Moacyr Luz e Gabriel Cavalcante
“Chefia”
De Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro
• Intérprete: Wilson das Neves
"SENZALA E FAVELA"
• Álbum de Wilson das Neves
• Vários artistas
• FundiSom
• 18 faixas
• Disponível nas plataformas musicais