Escritora Marguerite Duras olha para a câmera

Marguerite Duras, em "A dor", reúne textos irretocáveis sobre o horror da guerra

Charles Platiau/AFP/28/9/84


O filme “Hiroshima, meu amor”, lançado em 1959 com roteiro de Marguerite Duras (1914-1996)28/9/84, começa com um diálogo no qual uma personagem francesa afirma para um homem japonês que “viu tudo em Hiroshima”.

As reconstituições, ela diz, o museu, as pessoas queimadas e “o ferro tornado vulnerável como a carne”. Em resposta, o homem, seu amante, afirma que ela não viu nada em Hiroshima, ela é uma ignorante da tragédia daquele lugar.

O diálogo enigmático levanta questões que permeiam o debate sobre a Segunda Guerra Mundial e as violências que a acompanharam: quanto é possível que alguém que não esteve em Hiroshima ou nos campos de concentração nazistas entenda do que aconteceu lá? E quanto dessas experiências no limite do humano é possível comunicar?

Essas perguntas são o ponto de partida para “A dor”, livro que reúne seis textos escritos no pós-guerra, mas publicados apenas em 1984, após Duras ter recebido o prêmio Goncourt por “O amante”.

Os textos que compõem a obra são distintos tanto no formato quanto no período de escrita, mas todos eles tratam da Segunda Guerra, da ocupação da França pelos nazistas, das experiências da autora na resistência e do Holocausto.

A volta de Robert

O primeiro fragmento, aquele que dá nome ao conjunto, é também o mais forte: diários da época em que Duras esperava o retorno de seu marido, Robert L., dos campos de concentração e depois uma narrativa dos dias que se seguiram a chegada dele.

A autora escreve em uma linguagem exata e cortante que em muitas de suas obras serve para revelar ao leitor os personagens em sua faceta mais honesta, sem qualquer artifício de embelezamento. Aqui, essa violência cria um texto peculiar: sem ter nunca ido aos campos e sem se esquecer disso por um só momento, a autora entrega um dos mais brutais testemunhos dos horrores nazistas.

As descrições que ela faz do quase cadáver que é Robert evocam o mesmo tipo de carnalidade que torna as cenas de sexo em “O amante” tão materiais e assombrosas, mas aqui elas mergulham o leitor na atmosfera de uma morte contaminada e venenosa, aquela que nas palavras de Paul Celan era “um mestre que vem da Alemanha”.

Esse domínio da morte, sua iminência constante e a imagem dos alemães como seus mensageiros, assombra todos os textos desse livro – mesmo os que se passam depois da libertação ou são inteiramente ficcionais.

Da mesma forma, o destino dos judeus permeia tudo que acontece, uma vez que, em uma sobriedade rara para escritores europeus, Duras ao mesmo tempo se alinha com o lugar de vítima – era participante ativa da resistência francesa, afinal – e reconhece que o trauma preciso dos judeus europeus lhe escapa.

Ela não é judia, e os atos que a tornariam perseguida pelos nazistas e que mandaram Robert para o campo são narrados nesse livro como frutos de uma escolha, não de um acidente de origem étnica. Além disso, seu mundo seguirá mais ou menos intacto após o final da guerra, enquanto aquele que ela imagina para a menina judia Aurélia se desfaz como cinzas.

Cada fragmento é acompanhado de uma pequena introdução da autora e, no primeiro, Duras afirma que “A dor” é um de seus textos mais importantes. De fato, nele seus grandes temas – a memória, o corpo, a ambiguidade moral das escolhas humanas – encontram uma urgência histórica, e a linguagem crua e profundamente pessoal da autora comunica de forma rara a experiência de uma subjetividade em tempos de guerra.
 
“A dor” é um livro único, exercício solitário de implicar toda a Europa, inclusive a própria escritora e seu país, em uma tragédia que talvez seja impossível acessar.
 

“A DOR”

. De Marguerite Duras
. Tradução: Luciene Guimarães e Tatiane França
. Bazar do Tempo
. 208 páginas
. R$ 64