Penúltimo filme do cineasta Walter Hugo Khouri (1929-2003), “As feras” (1995) é um caso raríssimo na cinematografia nacional. Tanto por isso, foi pouco assistido em sua época. Na noite desta terça-feira (16/5), o longa abre, no Cine Humberto Mauro, a 23ª edição da Mostra de Cinema Curta Circuito.
O evento exibe, até o final de julho, sete filmes que atravessam 40 anos da produção nacional, de 1970 a 2010. O eixo temático “amores brasileiros” os une. Após cada sessão, haverá bate-papo com alguém da equipe (diretor ou elenco) e um crítico.
“Achamos importante falar sobre o amor pelo cinema brasileiro, ainda mais em que estamos na fase de poder celebrá-lo, já que as políticas culturais estão de volta”, afirma Daniela Fernandes, idealizadora da mostra.
“Os filmes apresentam vários tipos de amor. Neste no momento em que precisamos de mais tolerância, a seleção veio para somar – há títulos bem diferentes uns dos outros, alguns até discrepantes.”
Fernanda Montenegro e Pedrinho Aguinaga
O filme mais antigo é “Minha namorada” (1971), de Zelito Viana e Armando Costa, que mostra a jovem moderna da Zona Sul carioca, noiva de um homem mais velho e conservador, descobrindo o amor e o sexo com um músico. O elenco mistura os grandes Fernanda Montenegro e Jorge Dória ao cantor Marcelo Costa (popular nos anos 1980, com o hit “Abre coração”) e Pedrinho Aguinaga, na época “o homem mais bonito do Brasil”.
O título mais recente é de 2016, o documentário “São Paulo em hi-fi”, de Lufe Steffen, um retrato da noite gay paulistana durante a ditadura militar.
Especialista em Walter Hugo Khouri, Donny Correia, doutor em estética e história da arte pela USP, vai mediar o debate em torno de “As feras”. Os convidados desta noite são o crítico Daniel Salomão Roque e a atriz e artista visual Cláudia Liz, que participou do filme, definido por Correia como uma “colcha de retalhos”.
“As feras” nasceu como curta-metragem no início da década de 1980, no intervalo entre “Eros, o deus do amor” (1981) e “Amor, sublime amor” (1982). Faria parte do longa composto por outros curtas que teria como norte a primeira vez de um garoto. Khouri filmou o projeto, com Lúcia Verissimo e Monique Lafond no elenco. Porém, a iniciativa foi engavetada.
Quase 15 anos mais tarde, ainda na “seca” que o fim da Embrafilme trouxe para a produção nacional, Khouri conseguiu terminá-lo. Lúcia e Monique não participaram. Com novos elenco e equipe (até o diretor de fotografia é outro), o cineasta filmou o longa.
O ano era 1995 e Khouri não conseguiu lançá-lo por causa de entraves burocráticos. Engavetado até 2001, finalmente “As feras” chegou aos cinemas. Foi um fracasso.
“É um filme estranho, pois tem muito do aspecto estético e narrativo dos anos 1980. Além disso, o curta foi incluído dentro de uma história maior. Ele ficou um pouco irregular. Em 2001, estávamos em um momento mais avançado. Já havia 'Central do Brasil' (1998), por exemplo, era outro tipo de cinema. 'As feras' tem estética meio passadista, é corpo estranho na própria filmografia do Khouri, mesmo trazendo várias coisas do cinema dele, como o estilo existencial, a questão psicológica e filosófica”, comenta Correia.
O protagonista é Paulo Cintra (Nuno Leal Maia), renomado psicólogo casado com Ana (Cláudia Liz). Ela é bem mais jovem, subentende-se que foi sua aluna na faculdade. Meio desencantada com a psicologia, Ana dá um passo importante para a carreira de atriz: consegue o principal papel da peça “A caixa da Pandora”, realizada por um grupo de lésbicas.
O curta dos anos 1980 entra na história como o passado de Paulo. Adolescente, ele foi do interior passar um fim de semana na casa dos tios ricos na cidade grande. Mas eles estavam viajando, e o menino teve paixão platônica pela prima (Lúcia Veríssimo), que passava os dias com a namorada (Monique Lafond).
“O Khouri enxertou as cenas do curta fazendo as memórias do Paulo”, conta Correia, dizendo que, mesmo falho, “As feras” é interessante. “Ele conseguiu uma forma bastante inventiva de terminar o projeto que ficou mais de 10 anos parado.”
Khouri lançou 26 filmes – todos longas-metragens, com exceção de um curta. O grande clássico do diretor é “Noite vazia” (1964). Seu longa mais conhecido, e pelas razões erradas, é “Amor, estranho amor”, durante muitos anos chamado de “o filme pornô da Xuxa”.
“Isso começou a mudar mais recentemente, quando a própria Xuxa começou a falar bem do filme, meio que fazendo as pazes com ele. Deixou de ser tabu em 2020, quando o Canal Brasil o exibiu. Quem continua falando que é depravado é a parcela que não viu o filme. Quem vius sabe que é perfeitamente correto com a trajetória do Khouri.”
Resgate da obra de Khouri
Trajetória meio esquecida, aliás. Depois de um artigo publicado na imprensa em 2019, quando Khouri completaria 90 anos, Correia foi contatado pelo neto do cineasta, que lhe deu acesso ao acervo do avô.“A partir daí, comecei a mergulhar na obra dele. O Khouri era de São Paulo e sempre teve problema com o Cinema Novo, que era engajado, fazia cinema social. Diziam que ele era alienado, pernóstico, que só olhava para as elites, quando na verdade estava criticando o hedonismo, o machismo, o elitismo”, afirma Correia.
A partir do acesso ao acervo, ele fez a revisão da obra do cineasta, “para trazê-lo para o presente”. O resultado está no livro “Re-visão de Walter Hugo Khouri”, que deve ser lançado neste ano.
PROGRAMAÇÃO
» HOJE (16/5)
• “As feras” (1995), de Walter Hugo Khouri
Quando criança, Paulo sentia paixão obsessiva pela prima Sônia. Além de mais velha, ela mantinha um relacionamento com Silvia, razão de profundo sofrimento para o menino.
Já adulto, Paulo revive o drama quando a mulher, Ana, decide entrar para uma companhia de teatro.
Após a sessão, bate-papo com o crítico Daniel Salomão Roque e a atriz Cláudia Liz e mediação de Donny Correia
» 30 DE MAIO
• “São Paulo em hi-fi” (2016), de Lufe Steffen
Documentario? resgata a era de ouro da noite gay paulistana nas décadas de 1960 a 1980, com casas noturnas, transformistas e militantes em plena ditadura militar.
Após a sessão, bate-papo com o crítico Marcelo Carrard e o diretor Lufe Steffen
» 13 DE JUNHO
• “Baixo Gávea” (1986), de Haroldo Marinho Barbosa
As questões existenciais de duas jovens que moram juntas e querem produzir peça baseada no poeta português Fernando Pessoa.
Após a sessão, bate-papo com a crítica Maria Trika e a atriz Louise Cardoso
» 27 DE JUNHO
• “Elvis e Madona” (2010), de Marcelo Laffitte
A partir de um encontro inusitado, surge a história de amor entre Elvis, entregadora de pizza, e Madona, travesti que sonha em produzir espetáculo de teatro de revista.
Após a sessão, bate-papo com a crítica Maria Caú e o ator Igor Cotrim
» 4 DE JULHO
• “Minha namorada” (1971),
de Zelito Viana e Armando CostaA jovem Maria é noiva de um homem mais velho e conservador. Sua aparente estabilidade é colocada à prova quando ela conhece Pedro, músico despreocupado que poderá lhe trazer felicidade.
Após a sessão, bate-papo com o crítico Fernando Oriente e o cantor Marcelo Costa
» 18 DE JULHO
• “Canastra suja” (2018), de Caio Sóh
Filme acompanha uma família complicada, encabeçada pelos personagens de Marco Ricca e Adriana Esteves. Eles têm três filhos, o caçula é autista. O pai é alcoólatra, a mãe tem um caso
com o namorado da filha, que seduz o próprio patrão.
Após a sessão, bate-papo com o crítico Ailton Monteiro e o diretor Caio Sóh
» 25 DE JULHO
• “A menina do lado” (1987), de Alberto Salvá
Jornalista aluga casa em Búzios para concluir um livro. Ao lado, vive uma jovem de 14 anos em férias. Solitária e afável, ela conquista o homem de meia-idade.
Após a sessão, bate-papo com a crítica Eliska Altman, a roteirista Elisa Tolomelli e a atriz Flávia Monteiro
CURTA CIRCUITO
Estreia nesta terça-feira (16/5), às 19h30, no Cine Humberto Mauro do Palácio das Artes (Avenida Afonso Pena, 1.537, Centro). Sessões quinzenais, sempre às terças, até 25 de julho. Entrada franca. Informações: curtacircuito.com.br
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