Ailton Krenak e Livio Tragtenberg*
Um coletivo tão díspar, composto de multiculturais sujeitos, atende ao instigante convite da direção do Theatro Municipal de São Paulo (TMSP)para um desafio à altura deste transe que a vida cultural no Brasil impõe. Fazer uma montagem de “O guarani” preservando Carlos Gomes, ao mesmo tempo que atende também ao apelo de Mário de Andrade a um “– salvemos Peri.”
Uma proposta que reinventa o próprio sentido de uma temporada lírica em pleno século 21.
Um clássico inquestionável, obrigatório na programação deste teatro que vem se destacando por uma programação potente e diversa celebra o maestro que fez a Europa parar e ouvir o acorde destemido de uma certa ideia de brasilidade – que por décadas abre o radiofônico “A voz do Brasil”, tornando essa melodia uma variante do Hino Nacional.
Pois o tamanho do desafio em 2023 de trazer essa montagem que reúne a Orquestra Sinfônica Municipal, o Coro Lírico, os solistas Atalla Ayan, Nadine Koutcher, Rodrigo Esteves, Enrique Bravo, Débora Faustino, David Marcondes, Lício Bruno, Guilherme Moreira, Andrey Mira, Carlos Eduardo Santos, Orlando Marcos e Gustavo Lassen, sob a batuta e direção musical do maestro Roberto Minczuk, e também a Orquestra e Coro Guarani do Jaraguá – Kyre’y Kuery, fazendo diálogo com o andamento da música e do libreto mantidos na quase integralidade, mas abrindo-se para intervenções negociadas, passo a passo, na longa construção da releitura descolonizante deste clássico que institui caricaturas dos sujeitos indígenas como Peri, aquele a quem Mário de Andrade nos insta a salvar.
No centenário da Semana de 1922, enfim, se reúnem as condições da arte para pôr de pé uma montagem que passa por conversas apaixonadas com diretores e coletivos de arte da Colômbia e Peru, sondados para pensar leituras críticas desta consagrada obra, lançando olhar de povos originários da América Latina sobre o período colonial e suas marcas profundas. Com todo respeito, reconheceram o desafio de alguém de fora tocar o totem erguido por C. Gomes.
A direção girou, avançou em diálogos com artistas indígenas como Denilson Baniwa, convidado a fazer com corte radical a exagerada reprodução imagética do colonialismo na cenografia, trajes e trejeitos dos cantores desse tipo de representação. Releituras críticas, sem perder a ternura. Afinal foi esse artista do Amazonas com forte presença na pauliceia que cravou um lambe-lambe pelos edifícios da metrópole com o decalque de uma onça seguido da frase “São Paulo é terra indígena”, consoante com a luta histórica dos guarani pelo jaraguá e outras tekoa espalhadas por piratininga.
Denilson Baniwa atua como um operador da imagem, pensando a ópera e o livro como parte da formação de memória, da construção de imagem que as pessoas têm em relação à população indígena, em especial os guarani, para desconstruir ou “iconoclastar” essa imagem toda, reelaborando a ópera e dando ao público a possibilidade de escutá-la como nunca se viu.
Resgate e celebração se juntam para mais uma ocasião de trazer “O guarani” a seu público fiel, há 112 anos desde sua estreia no Theatro Municipal de São Paulo, numa ousada concepção que contempla a tradição operística em diálogo com a ancestralidade musical dos guarani, que passaram pelas antigas missões jesuíticas no século 17 e seguem até hoje aperfeiçoando seus conhecimentos sonoros, com orquestra singular, em que instrumentos feitos pelos seus executores soam numa musicalidade ritualística sagrada tecendo linhas entre o céu e a terra.
Davi Popygua, pensador e ativista da causa indígena, faz um “duplo” imaginário ao Peri pensado pela diretora Cibele Forjaz, que assina a direção cênica, como intervenção que estende a mão coletiva de corpo presente ao herói perdido no baile colonial, que pode ter sua redenção no gesto atual de ReExistência de povos relegados ao esquecimento, mas determinados a ficar vivos e cheios de memória. Memória que convoca as mulheres sob ataque misógino a tornarem-se floresta, rio e florescerem em outros corpos.
Um coro guarani se faz presente no palco, como uma realidade paralela à que segue o libreto, sem palavras mas de densidade táctil como pedra. Zahi Tenetehara evocando a personagem feminina da tribo dos aimoré, pretexto para uma guerra sangrenta, lembra o encantamento possível entre humanos e não humanos acenando para outros mundos possíveis, lá onde a vida se desveste do medo e abraça uma alegria incontida por ser, apenas vida. Pindorama a bela terra das palmeiras.
A música dos guarani é circular e serpenteia ao longo da encenação, trazendo nova temporalidade que nos coloca no presente e também nos projeta por sobre a ópera com uma visão crítica. Os cantos guarani nos arremessam profundamente ao interior de uma trama crivada de situações estereotipadas. Uma oportunidade rara de se presenciar o canto em diferentes claves: a da impostação lírica e a da lírica sem impostação, dos guarani.
O profano e o sagrado dialogando nas ondas da voz humana. A pele da ópera em carne viva, exposta. Caberá ao público completar a recepção desse ritual/récita, combinando universos e imaginando.
Mário de Andrade, crítico feroz das temporadas líricas do Municipal nos anos de 1940, certamente iria reconhecer a transgressão sensível que essa encenação nos convida a decifrar.
“IL GUARANY – O GUARANI”
Ópera de Carlos Gomes. Em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo, na capital paulista, até domingo (21/5). Ingressos esgotados.
*Ailton Krenak assina a concepção de “O guarani” e integra o comitê curatorial do TMSP. Livio Tragtenberg é consultor musical do comitê curatorial do TMSP