Para além de demarcar terras, povos originários parecem viver hoje uma luta para ocupar também as telas. Foi assim que o escritor Ailton Krenak descreveu, há alguns anos, a necessidade de aumentar a presença indígena no audiovisual, apelo que muitos parecem ter ouvido.





Numa leva recente de produções nacionais de ficção, os indígenas têm tomado protagonismo. Esse movimento ficar mais claro esta semana, quando o Brasil estará representado no Festival de Cannes, que começou nesta terça-feira (16/5), por “A flor do buriti”, que retoma o trabalho de João Salaviza e Renée Nader Messora com os krahô, já filmados por eles em “Chuva é cantoria na aldeia dos mortos”.

Mas antes do evento internacional, no mês passado, em que se comemorou o Dia dos Povos Indígenas, estiveram em cartaz “Noites alienígenas” e “Para'í”. No streaming, “Cidade invisível” manteve a segunda temporada, centrada no folclore, entre as mais vistas.

Aos tapajós, guaranis, krahôs e guajajaras desses títulos somam-se os ianomamis de “A última floresta”, os desanos de “A febre”, os ticunas de “Antes o tempo não acabava” e kuikuros, javaés e kadiwéus da animação “Mitos indígenas em travessia”.




 
Eles estão distantes de ficções celebradas do passado, como “Iracema, a virgem dos lábios de mel” e “O guarani”, que sexualizaram e escolheram brancos para o papel dos indígenas protagonistas, sem muito comprometimento ou contato com os povos originários.

“Quando usei a expressão 'demarcar as telas' pela primeira vez, em 2014, foi no sentido de desdobrar as conquistas políticas por direitos territoriais que a gente já tinha alcançado a partir dos anos 1980. Agora há uma nova jornada, que pensa o território não mais como uma questão física, mas também subjetiva”, diz Krenak, um dos autores e líderes indígenas mais respeitados do país, integrante da Academia Mineira de Letras (AML).
 

Ailton Krenak escreve roteiro sobre xavante que só aos 60 anos toma contato com pessoas de fora de sua aldeia

(foto: Alinne Tuffengdjian/Divulgação)
 

Ailton Krenak escreve 'Jerônimo'

Ele próprio prepara um roteiro, batizado de “Jerônimo”, que deve começar a ser gravado no ano que vem. Krenak deve assumir a codireção da trama, sobre um xavante que entra em contato com pessoas de fora de sua aldeia pela primeira vez, aos 60 anos. O orçamento foi aprovado e a expectativa é que o projeto seja finalizado em dois anos.





Impregnando narrativas audiovisuais de histórias sobre os povos indígenas, ele acredita, mudará também o clima político e a animosidade do país, que viu recentemente uma crise se alastrar pelos ianomamis e o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips.
 
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Quem faz eco é Maíra Bühler, cineasta que desenvolve “O casamento”. Ela insiste que é preciso acabar com a romantização em torno do tema, para que o Brasil entenda o quão diverso é – cheio de línguas, culturas e formas de viver diferentes.

Ainda em fase embrionária, “O casamento” surgiu de uma ideia da Abrolhos Filmes e pretende desconstruir a espetacularização que envolveu o primeiro matrimônio de um branco com uma indígena no Brasil, nos anos 1950.





Diacuí, do povo kalapalo, foi apresentada pelos jornais da época como a selvagem que seria civilizada, graças ao salvador branco que a levou para a cidade grande, encheu seu rosto de maquiagem e a pôs num vestido de noiva. Essa história, porém, é marcada por diversas agressões, ignoradas à época.

“Precisamos entender toda a dor e a violência que esse mito da miscigenação esconde. Uma das formas de romper com isso é entender que o amor romântico não é universal. Para os kalapalos, as relações afetivas são vividas de outra forma. Este é um filme sobre um choque de mundos e de narrativas”, diz Bühler.
 
 

A ideia idílica da miscigenação suscita também questionamentos dentro do próprio fazer cinematográfico. Por mais que a indústria esteja se voltando aos indígenas para além do gênero documental, mais antropológico, é fato que a produção desses filmes e séries ainda se concentra em mãos brancas.





Bühler assina o roteiro de “O casamento” com o antropólogo Renato Sztutman e Urisé Kalapalo, indígena, num esforço coletivo que, diz ela, ilustra justamente o choque cultural sobre o qual fala a trama.

Renée Nader Messora, cineasta que com o marido e codiretor, o português João Salaviza, levou “Flor do buriti” a Cannes, que começou nesta terça-feira (16/5), também se juntou a três representantes dos povos originários vistos nos filmes, Ilda Patpro Krahô, Francisco Hyjnõ Krahô e Ihjãc Henrique Krahô, corroteiristas que guiaram também seu processo de direção.
 

Em "A febre", ator Regis Myrupu faz o papel do protagonista Justino, indígena que deixou sua aldeia e trabalha no porto de Manaus

(foto: Tamanduá Vermelho/divulgação)
 

Editais de patrocínio

Editais também têm destinado recursos a produções centradas nos povos originários, mas o caminho até a representatividade em todas as esferas, incluindo em cargos de direção e produção, ainda é longo, na avaliação de Krenak.





O autor elogia o trabalho de Zelito Viana, Andrea Tonacci e Luiz Bolognesi, que se juntou a Davi Kopenawa em “A última floresta”, que ele vê como grandes aliados na desmistificação do indígena no audiovisual. Mas destaca que, ainda assim, é a visão do branco a que mais chega às telas. “Demarcar a tela é imprimir o nosso próprio olhar nas imagens que vão contar as nossas histórias”, afirma.

“Cidade invisível” foi criticada em sua primeira temporada justamente pela ausência de indígenas em suas equipes e episódios. Para a segunda leva, mudou a trama do Rio de Janeiro para o Pará e corrigiu o problema chamando a cineasta Gabriela Guarani para dirigir parte dos capítulos. O elenco também ganhou adições, como Zahy Tentehar.

Se no gênero documental realizadores indígenas têm aparecido com mais frequência, como é o caso de Takumã Kuikuro e da própria Graciela Guarani ou de M'bya Guarani Kuaray e Pará Yxapy, conhecidos também como Ariel Ortega e Patrícia Ferreira, homenageados na última Mostra de Cinema de Ouro Preto, a CineOP, a ficção se mostra um território ainda a ser desbravado.

Com amplo acervo de produções criadas por indígenas, a plataforma Vídeo nas Aldeias, fundada pelo antropólogo e documentarista Vincent Carelli, referência no tema, reúne o potencial que há neste novo cinema, que ainda tem muito a ser explorado. 

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