“Ele bebeu da juventude. Tanto é que morreu menino” – as palavras do bandolinista, violonista e compositor Marcos Frederico se referem a Mozart Secundino (1923-2015) e aludem ao fato de que o músico, ao longo de uma trajetória de mais de 60 anos, se tornou, para diferente gerações, a referência do violão de seis cordas no circuito do choro em Belo Horizonte.
O depoimento de Frederico está no livro “O choro em contexto: nas baixarias de Mozart Secundino”, do músico, professor e etnomusicólogo Humberto Junqueira, que será lançado neste domingo (21/5), a partir das 10h30, no bar O Muringueiro, no Bairro da Graça – reduto de chorões da cidade.
Um dos fundadores do Clube do Choro de Belo Horizonte, em 1977, Mozart Secundino era um baluarte da velha guarda, mas transitava com desenvoltura entre a juventude interessada no gênero que tem em Pixinguinha, Jacob do Bandolim e Waldir Azevedo alguns de seus principais expoentes. Esse trânsito fluido, aliás, garantiu ao músico o amplo – e tardio – reconhecimento público a partir do final dos anos 2000, observa Junqueira.
O autor de “O choro em contexto” diz que a convivência com Secundino o motivou a escrever o livro, que, na verdade, é desdobramento de sua tese de doutorado realizada com dupla tutela, da École des Hautes Études en Sciences Sociales (França) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e defendida em dezembro de 2020.
Biografia, etnografia e cartografia
Junqueira destaca que se trata de um misto de biografia de Mozart Secundino, do relato pessoal de sua relação com ele, da cartografia do choro em Belo Horizonte e do estudo da técnica do violão de seis cordas – sem carregar, no entanto, o comprometimento estrito com nenhuma dessas frentes.
“Não é a etnografia clássica de uma cultura, de um povo ou de um território, mas tem perspectiva etnográfica. Também não é bem uma biografia, mas tem dados biográficos. Não pretende destrinchar uma técnica violonística, mas traz muitas informações sobre o choro, uma gramática da técnica de Mozart Secundino, bem como histórico bastante aprofundado sobre o gênero”, aponta.
Nesse lugar de convergência, Junqueira tentou fazer abordagem do choro não de modo abstrato ou genérico, mas vinculada à figura de Mozart Secundino e suas práticas sociomusicais. “A música não aparece como algo meramente teórico, ela aparece concretamente no fazer, de uma forma mais fácil de ser entendida”, destaca.
Além da proximidade com Secundino, ele diz que o elegeu como tema de sua tese – iniciada no ano da morte do músico – pela singularidade de sua trajetória, por ser o guardião da tradição do choro e por sua importância para a cena local.
“Recentemente, participei de uma roda com músicos jovens, que não chegaram a tocar com Mozart, mas que o conhecem e o reverenciam, porque ele teve um papel importante na cena de Belo Horizonte e de Minas Gerais”, diz.
Mozart Secundino só alcançou notoriedade depois dos 80 anos, inclusive na esfera política, ao ser agraciado com honrarias pela Câmara Municipal de Belo Horizonte. O autor acredita que essa popularidade foi conquistada em função das costuras que o músico naturalmente fazia. “Era um personagem que circulava muito entre a juventude; um ancião, um sábio que transitava por esses ambientes compartilhando sua experiência”, pontua.
'Se você conversa com músicos do choro na faixa entre 30 e 70 anos, todos vão falar que viram Mozart tocar, e isso serviu de estímulo para a carreira. Ele contava histórias da formação de Belo Horizonte, da construção do aeroporto, do bonde, dos edifícios históricos'
Humberto Junqueira, etnomusicólogo
Memórias de infância
Junqueira conheceu o trabalho do chorão cerca de uma década antes de ele se tornar figurinha carimbada no circuito musical. Quando tinha 10 ou 11 anos, no início da década de 1990, era levado pela avó paterna a rodas de choro e bailes de gafieira em que Mozart Secundino tocava. Seus familiares já conheciam o veterano músico, porque ele se apresentava habitualmente no restaurante no qual a irmã de sua avó trabalhava.“É uma lembrança que tenho da pré-adolescência. Depois, quando tive contato mais pessoal com ele, já estava iniciando minha trajetória musical. Aí já foi uma convivência muito próxima mesmo, que durou de 2003 até 2015, quando ele faleceu, com 92 anos.”
Quando começou a ser chamado frequentemente para se apresentar em eventos públicos, Secundino resolveu criar o grupo Quem Não Chora Não Mama, o qual Humberto Junqueira foi convidado a integrar.
Esse contato estreito – musical e pessoal – serviu como uma luva ao propósito de realizar um trabalho que estabelecesse diálogo orgânico entre a música e a etnografia.
“A tutela francesa da tese de doutorado apontava para o caminho dos estudos avançados em ciências sociais, então ocupo um lugar também como ator nessa pesquisa, falando da minha experiência. Não tento ficar isento, como mero observador, eu participo das cenas. Quando relato fatos, estou presente ali também, com o meu ponto de vista”, ressalta Junqueira.
Quando fala de Mozart Secundino como guardião da tradição, ele se refere ao fato de o músico ter se mantido fiel a um estilo violonístico que foi caindo em desuso. O violão de sete cordas se tornou bastante difundido no choro, ocupando, a partir de meados do século passado, o lugar que era cativo do violão de seis cordas, aponta.
Humberto Junqueira afirma que Mozart Secundino foi o mantenedor de uma prática que foi se transformando. “É como se ele fosse um elo entre o passado e o presente, por essa fidelidade a uma corrente violonística”. O tema é aprofundado no livro, que aborda o lugar do violão de seis cordas no choro e nos chamados conjuntos regionais, a partir da virada do século 19 para o século 20.
“Trato de como a música era feita e como foi a evolução dos conjuntos regionais, com o violão de seis cordas, até seu apogeu, na Era do Rádio”, destaca.
História de BH
A propósito, o autor chama a atenção para o fato de que a vida de Mozart Secundino – que completaria 100 anos em 2023 – estabelece um paralelo não apenas com a história do choro em Belo Horizonte, mas com a própria cidade. O músico nasceu em um distrito de Betim, mas se mudou, com pouco mais de 10 anos, para a capital que ainda engatinhava.“Se você conversa com músicos do choro na faixa entre 30 e 70 anos, todos vão falar que viram Mozart tocar, e isso serviu de estímulo para a carreira. Ele contava histórias da formação de Belo Horizonte, da construção do aeroporto (em cuja obra o pai trabalhou), do bonde, dos edifícios históricos. Quer dizer, não é algo só do ponto de vista do violão ou da evolução do choro, mas da história da cidade”, diz Junqueira.
O lançamento de “O choro em contexto” contará com bate-papo com familiares, músicos e amigos do músico. E, dependendo da adesão, também com uma roda de choro.
Vão participar da conversa os filhos Alana Márcia e Mozart Júnior; o genro Edir Oliveira; os músicos Zé Carlos, Artur Pádua e Gustavo Monteiro; a pesquisadora Lúcia Campos; e Daniela Meira, diretora do documentário “Simplicidade – Mozart Secundino de Oliveira”, lançado em 2015.
“Convidei pessoas que conheço e sei que são muito importantes na vida e na trajetória do Mozart. Zé Carlos, cavaquinista, foi um grande parceiro, fez parte do Quem Não Chora Não Mama. Chamei dois violonistas que, como eu, tocaram muito com ele; o Artur Pádua, aliás, acabou herdeiro da tradição do violão de seis cordas no choro. A ideia é lembrar e partilhar as histórias do Mozart, mas não existe pauta preestabelecida, o papo vai rolar de forma descontraída”, diz Junqueira.
O evento será norteado pelo mesmo espírito de informalidade e congraçamento dos ambientes em que Mozart Secundino se apresentava.
“Eu vou com meu violão, Zé Carlos deve levar o cavaquinho e quem mais quiser levar o instrumento e estiver disposto, entra na roda. Mas ela vai depender da adesão, porque não tem cachê nem nada. Se não tiver roda, faço lá umas duas ou três músicas para lembrar o Mozart e é isso mesmo”, conclui.
O CHORO EM CONTEXTO
Nas baixarias de Mozart Secundino
• Livro de Humberto Junqueira
• Cancioneiro
• Lançamento neste domingo (21/5), a partir das 10h30, no bar Muringueiro (Rua Juacema, 416, Bairro da Graça).
• Entrada franca
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