'Um país melhor não se faz só de poesia. Mas o que o Chico Buarque escreve é lição'
Nei Lopes, escritor
Ouvir, ler, conversar com Nei Lopes é uma bênção. O poeta, compositor, cantor e estudioso da ancestralidade africana celebra seus 80 anos, completados no último dia 9, com o refinado livro de poesia “Oitentáculos” (Editora Record).
O livro passeia pelas terras da cultura afroindígena e pela “cosmologia dos orixás”, além de perfumar palavras com leves lembranças da mocidade no bairro de Irajá, no Rio de Janeiro. Um dos maiores pensadores brasileiros vivos, Nei reafirma, nos poemas, a tríade poesia, democracia e direito. Prolífico, revela que lançará no final deste mês o romance “A última volta do Rio”.
“Oitentáculos” é uma certidão (poética) de vida. Como foi escolher e reunir esses versos, alguns escritos entre as décadas de 1970 e 1980?
Na verdade, os poemas antigos, reescritos, são poucos. Mesmo porque, em 1996 e 2014, eu publiquei duas coletâneas de inéditos, “Incursões sobre a pele” e “Poétnica”. Agora, o que dá o tom do livro é exatamente o clima de barbárie que vivemos nos últimos quatro anos, e que, felizmente, já vemos se dissipando.
O poema e a letra de um samba têm suas similaridades, mas o que distingue um do outro?
A letra de canção, qualquer que seja o gênero, é cálculo, matemática, pois tem que se encaixar na melodia, na métrica e na acentuação das sílabas. O poema, eu vejo como abstração, sentimento puro, as rimas, quando acontecem, surgindo ao acaso. Pelo menos, comigo é assim.
Em que momento a poesia surgiu na sua vida?
Entre os 12 e 13 anos de idade, escrevi um soneto de amor. Quando mostrei para o irmão mais velho, com receio de levar uma bronca, ele simplesmente pegou o violão e encaixou uma melodia, dolente, de samba-canção.
O poema “Crença” é muito atual, fala sobre o deus dos algoritmos, que dita e escraviza vidas. Como é o Deus da sua aldeia?
Na minha “aldeia”, o Ser Supremo é tratado por vários nomes diferentes, como Olófim, Olodumare, Olórum... Mas o que Ele é mesmo é a “Força Ativa que estabelece e conserva a ordem natural de tudo quanto existe”. E esta é uma das definições de natureza, grafadas no “Dicionário Barsa do meio ambiente”, edição de 2009.
Nesses 80 anos bem vividos, do que sente saudade? O senhor tem algum arrependimento? De quê?
Tenho muita saudade da numerosa família proletária da qual fui o filho mais novo e hoje sou o único remanescente. Mas hoje sou o patriarca de uma pequena linhagem, e isto é bom. Arrependimento, tenho alguns; mas minha espiritualidade me ajuda a suportar.
O Brasil viveu nas últimas décadas a urbanização predatória, que mastigou costumes de bairros populares, como Irajá, no Rio de Janeiro, onde você viveu. Como é observar essas mudanças? Como manter tradições?
Existe agora uma palavra da moda que é gentrificação (do inglês, para variar, risos). Ela explica muito disso que acontece. E tradição nem sempre merece ser mantida. Aí, eu prefiro ser memorialista do que ser saudosista. Os romances e contos que escrevo, todos são feitos de lembranças. E este é o jeito que eu encontrei para reviver as minhas tradições.
Ainda sobre tradições: o tema ancestralidade, felizmente, vem ganhando espaço entre os jovens. Há uma necessidade (e não modismo) de se assumir como pessoa preta, apesar de vivermos numa sociedade racista até a raiz. Seus versos, tanto na poesia quanto no samba, trazem a grandeza africana. É esse o caminho para os jovens?
Esse é o meu caminho, como disse para você. Quem quiser entrar nele, será bem chegado!
Passamos por anos difíceis, em que o ódio era pauta diária. Como a poesia pode ajudar na luta por um país melhor?
Um país melhor não se faz só de poesia. Mas o que o Chico Buarque escreve é lição.
O samba da Tia Ciata ainda está vivo?
O samba da Tia Ciata é o mesmo que se canta, toca e dança até hoje na Bahia, sobretudo no Recôncavo.
Nunca fui a um desfile de uma escola de samba, nunca subi o morro cantando... Queria que o senhor me descrevesse essas emoções...
É indescritível! E, mais ainda, é estar no meio de uma boa bateria de escola, sentindo a polirritmia, os instrumentos da percussão “conversando” uns com os outros. Haja coração!
“OITENTÁCULOS”
• Poemas de Nei Lopes
• Record
• 190 páginas
• R$ 49,40
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