De tempos em tempos, filmes retomam a temática do aborto, resultando em obras fortes como “Uma canta, a outra não”, de Agnès Varda, ou “A passagem do cometa”, de Juliana Rojas. Na vida, porém, a situação se repete com mais frequência. No Brasil, é realidade para uma em cada sete mulheres com menos de 40 anos, segundo estudos mais recentes.
São essas vidas que se tornam estatísticas que Lillah Halla tenta apresentar em seu primeiro longa, “Levante”, exibido na Semana da Crítica, mostra paralela do Festival de Cannes.
O filme sabe bem o que pensa do assunto: é abertamente pró-aborto e narra didaticamente a história de uma jovem de 17 anos, vivida pela excelente Ayomi Domenica, que começa a duvidar do sucesso na vida após uma gravidez indesejada. A atriz é filha do rapper Mano Brown e da empresária Eliane Dias.
Sofia é a melhor jogadora do time de vôlei da vizinhança, ao que sugere, no Capão Redondo, periferia de São Paulo. Está no cursinho e transou com um menino que nunca vemos.
Negras, lésbicas, trans e asiáticas
Aliás, o mundo masculino não faz parte do seu entorno, composto por garotas de um grupo bem diverso – Sofia é negra, tem amigas negras, lésbicas ou bissexuais, incluindo ainda uma jovem de ascendência asiática e outra trans. Ao longo da trama, ainda se descobrirá sexualmente.
O único homem que fará parte da narrativa é seu pai, um apicultor vivido por Rômulo Braga. Ele não reage bem à notícia da filha, que estava prestes a ganhar bolsa para jogar no Chile. Na cena seguinte, respira e tentará compreender o drama.
Afinal, Sofia precisará de ajuda para não piorar a situação. Além de tentar se automutilar, ela vai atrás de uma clínica por conta própria e acaba caindo numa armadilha religiosa, que será definitiva para o desenrolar da trama.
Pai e filha até atravessam para o Uruguai, onde o aborto é legal, mas Sofia não tem os devidos documentos e tampouco pode voltar para o Brasil com os remédios necessários.
Se infelizmente é fato que o Brasil protagoniza cenas absurdas em que governantes do alto escalão atuam para impedir o aborto de crianças, esse maniqueísmo do roteiro enfraquece um tanto o conjunto, repercutindo a percepção geral dos meios progressistas de que o cristianismo ou seus fiéis mais radicais emperram determinados avanços.
A zombaria aparece já na primeira cena, quando uma das amigas se fantasia de crente, com peruca longa e saia, para roubar remédios, hormônios e testes de gravidez, enquanto outras distraem o farmacêutico. Depois, versículos da “Carta de Paulo aos romanos” serão pichados na casa de Sofia como forma de ameaça.
Aliás, o título provisório do filme era “Livramento”, termo comum na comunidade evangélica para nomear uma prevenção divina.
Grace Passô no elenco
Os vizinhos são mal-encarados, mas Sofia encontrará pontos de apoio, como a técnica do time, Sol, papel de Grace Passô. É uma grande atriz, mas aqui não tem muito material para trabalhar para além de palavras de incentivo.
“Levante” pode soar – para recuperar uma discussão antiga sobre “Bacurau”, outro longa brasileiro que passou pela Riviera – como propaganda, no sentido de não querer explorar ambiguidades ou deixar seu espectador em dúvida.
O longa tem mensagem clara e quer transmiti-la de maneira ilustrativa, talvez como última esperança de converter quem discorda de suas ideias, enquanto projeta nas telas francesas uma fatia da realidade nacional.
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