Em 27 de outubro de 2008, primeiro dia de visitação à 28ª Bienal de São Paulo, cerca de 40 pichadores invadiram o segundo andar do pavilhão no Parque Ibirapuera. Picharam paredes e vidros. A área estava vazia, uma proposta da própria curadoria do evento – tanto por isso a edição foi apelidada de “Bienal do vazio”. Houve truculência no ataque e uma pichadora foi presa.
Quem conta essa história é o diretor Cláudio Borrelli, já naquela época envolvido com a pichação em São Paulo. Foram 15 anos até que ele chegasse ao primeiro longa, “Urubus”, com estreia nesta quinta-feira (1º/6), no UNA Cine Belas Artes, em BH. Envolvido com publicidade durante boa parte da carreira, Borrelli integra o time de diretores da O2.
O cineasta Fernando Meirelles, de “Cidade de Deus” (2002), é produtor executivo de “Urubus”, que está sendo distribuído pela O2 Play.
Abrindo um parêntesis para explicar a menção a Belo Horizonte: em agosto de 2010, um grupo de pichadores da capital mineira, autonomeados Os Piores de Belô, foi preso e enquadrado por formação de quadrilha.
Animal odiado
Ainda que tenha se abastecido de fatos, o filme é ficcional e acompanha os pichadores Urubus. O nome pode ser visto como referência à ação de 2010, mas também à própria condição de quem atua no pixo.
“O urubu é um animal odiado pela sociedade, assim como o pichador. E o urubu também vê a cidade de cima, o que é característica forte da pichação em São Paulo”, explica Borrelli.
Quem comanda o grupo de jovens da periferia que atua no Centro de São Paulo é Trinchas (Gustavo Garcez), morador de uma favela na Zona Leste. O grupo escala os edifícios mais altos para deixar sua marca. A vida é um vai e vem de adrenalina pura, algumas fugas da polícia, até que uma garota cruza o caminho de Trinchas.
Valéria (Bella Camero) é a estudante universitária de artes, recém-chegada de Brasília, que decide fazer um trabalho sobre o pixo. Rapidamente se envolve com Trinchas e seus amigos. O relacionamento amoroso deixa marca no pichador, que descobre o mundo da arte contemporânea por meio da namorada. Os dois universos não demoram a colidir.
A primeira invasão à Bienal está no filme e também as consequências do ato, que chamou a atenção do meio artístico tanto brasileiro quanto internacional para os jovens invisíveis que atuam nas ruas. Borrelli trabalhou no roteiro com uma fonte primária. Djan Ivson, que hoje assina Cripta Djan, é um dos coautores do roteiro (dividido também com Mercedes Gamero).
“Comecei o projeto em 2008, antes de eles invadirem a Bienal. Já me interessava por pichação há um bom tempo e cheguei ao Cripta, que estava prestes a fazer o documentário do João Wainer”, conta Borrelli, referindo-se a “Pixo” (2009), dirigido por Wainer e Roberto Oliveira, sobre a história da pichação em São Paulo.
Cripta Djan, conta o diretor, passou a documentar o movimento no início dos anos 2000, com registros das festas, escaladas, brigas e fugas. “Ele vendia esse material em DVDs. Inclusive a câmera da personagem da Bella Camero (Valéria) no filme é a que ele usava.”
No decorrer do processo, Borrelli mudou bastante o roteiro. A estudante Valéria não existia nas primeiras versões – inicialmente, a figura feminina da trama era uma pichadora. “Como a partir de 2008 começou o envolvimento de estudantes de arte com a pichação, resolvemos mudar a personagem.”
Trupe de não atores
Uma ideia que permaneceu desde a origem do projeto era trabalhar com elenco de não atores – todos os que estão na tela são pichadores. Além da dupla principal, Bruno Santaella, Júlio Martins, Roberto Orlando e Matias Antônio participam do filme, rodado em 2018. Tanto por isso, o casting foi complicado.
Morrelli queria trabalhar com Fátima Toledo, a mais conhecida (para alguns, polêmica) preparadora de elenco do cinema brasileiro. Decidiu esperar que ela terminasse seu filme anterior, o longa “Marighella”, para iniciar o projeto dele. Bella Camero foi chamada para “Urubus” por sugestão de Fátima – a atriz acabara de rodar o filme de Wagner Moura, interpretando a militante Bella.
“A seleção (dos pichadores) veio da Fátima, que pega o processo desde o início. Naquele momento (da pré-produção do longa), o (João) Dória era o prefeito (que iniciou a campanha de tolerância zero contra pichadores e grafiteiros, pintando de cinza muros e paredes de São Paulo). Muitos acharam que a seleção era armadilha da prefeitura para cadastrar pichadores. O próprio Gustavo negou cinco vezes a mensagem (para o casting). Só depois que o Djan lhe disse que a coisa era ‘quente’ ele fez o teste”, continua Borrelli.
Definido o elenco, foram quatro meses de preparação. Cripta Djan assinou os diálogos. “Mas havia falas que os deixávamos livres para dizer. Só quando se distanciavam muito os puxávamos para trás, pois ficava difícil de entender. Até brincamos, durante as filmagens, que eles teriam de falar durante dois minutos sem usar nenhuma gíria. Ninguém conseguiu”, conta Borrelli.
Prêmios
“Urubus” ficou pronto no início de 2020 e chegou a participar de um festival na Bélgica em fevereiro daquele ano. Com a pandemia, tudo parou. O longa só retornou na Mostra de São Paulo, em 2021, conquistando os prêmios de melhor filme brasileiro dados pelo público e pela crítica.
Ver o longa chegar às salas de cinema, depois de uma década e meia de iniciado o projeto, é “um bônus” para Borrelli.
“Como é filme sobre pichação, a existência dele em si já é um ato revolucionário, pois trata do tema em que ninguém quer encostar. Tivemos muita dificuldade nas leis (de incentivo fiscal), com parceiros e patrocinadores. No dia em que terminei a edição, me senti realizado, pois foi tão difícil colocar o filme de pé que só o fato de tê-lo terminado era uma coisa tremenda. Espero que as pessoas tenham acesso a ‘Urubus’ principalmente para entender (os pichadores) pelo lado humano”, finaliza o diretor.
“URUBUS”
(Brasil, 2020, 113min., de Claudio Borrelli, com Gustavo Garcez e Bella Camero) – Estreia nesta quinta-feira (1/6), às 19h30, no UNA Cine Belas Artes