Gabriel de Sá
Especial para o EM
Em meio aos vocalises e efeitos sonoros do álbum “Milagre dos peixes”, o recurso que Milton Nascimento utilizou para driblar a censura imposta aos versos de Fernando Brant, Márcio Borges e Ruy Guerra, uma canção chama a atenção por destoar das demais: “Pablo”, a última faixa do disco. Composição de Milton com letra de Ronaldo Bastos, ela passou incólume pelos censores. Mas a música não foi entoada pelo autor, e sim por uma voz ingênua e até então desconhecida. “Meu nome é Pablo, Pablo, Pablo/ Como um trator é vermelho/ Incêndio nos cabelos (…) Meu nome é pedra/ E pedra é meu corpo.”
O timbre infantil que se escuta em “Pablo” é de Mauro Nilton Fragoso Borges, ou apenas Nico, o caçula dos 11 filhos do casal Maricota e Salomão Borges, pais de Lô e Márcio Borges. O garoto Nico tinha 12 anos quando fez sua estreia no estúdio. “Eu me lembro muito bem da gravação. Foi uma bênção de Deus e uma generosidade do Bituca”, conta Nico Borges, hoje, aos 63 anos.
Bituca convidou Nico e Telo, os caçulas dos Borges, para passar alguns dias de férias no Rio de Janeiro. Para isso, teve que pedir a autorização dos pais, que prontamente liberaram o passeio com o amigo ilustre da família. “O Bituca sempre gozou da confiança muito grande dos meus pais, como se ele fosse um irmão mais velho nosso”, conta Telo Borges, de 65 anos.
No Rio, veio a ideia de colocar os “sobrinhos” para participar de “Milagre dos peixes”. “Em uma das tardes, em vez de ir para a praia ou para o zoológico, Bituca levou a gente para o estúdio”, comenta Telo, à época com 14 anos.
Nico e Telo emprestaram suas vozes para as melodias de “Os escravos de Jó” e “Cadê”. Mas a participação de Nico foi além, como solista de “Pablo”. “Cantei a música sozinho e, no terceiro take, eu já tinha matado. Sou muito grato ao Bituca, assim como toda a minha família é”, diz o irmão mais novo de Lô e Márcio.
O drible de Ronaldo na censura
Depois das férias com ao menos um dia de músicos, os meninos voltaram para BH. “Apesar de garoto, eu estava sabendo de tudo o que estava acontecendo naquela ditadura cruel e sanguinária”, relata Nico, que lançou recentemente seu primeiro disco, “Pura magia”. “Se prestar atenção na letra (de ‘Pablo’), você percebe claramente como o Ronaldo Bastos driblou a censura genialmente”.
Telo Borges também se lembra com carinho das gravações do disco nos estúdios da Odeon, na Avenida Rio Branco, Centro do Rio de Janeiro. “Era muito novo, tinha 14 anos, e não sabia, naquele momento, a dimensão de estar gravando aquele disco, que se tornou antológico na carreira do Bituca. Pra mim, eu tava de férias, passeando no Rio de Janeiro”, conta o instrumentista e compositor mineiro.
“Eu me sinto honrado de ter meu nome na ficha técnica e fico surpreso de ver onde esse disco maravilhoso chegou”, conta Telo. Ele e Milton desenvolveram a amizade e tornaram-se também parceiros musicais: fizeram juntos três canções.
Uma delas, “Tristesse”, do álbum “Pietá”, de 2002, ganhou o Grammy Latino de melhor canção brasileira. Telo integrou ainda a banda de apoio de Bituca por meia década. “Sou muito grato ao Bituca. Amo ele de paixão, assim como amo meus irmãos”, arremata ele.
Pó de nuvem nos sapatos
A canção gravada por Nico Borges foi feita para Pablo, filho de Káritas, companheira de Milton entre os anos 1960 e 1970. "Milton é pai simbólico de Pablo, não é o pai legítimo, mas ele faz questão que se diga que Pablo é seu filho", disse Káritas à Folha de S. Paulo em 1997.
Na biografia “Travessia – A vida de Milton Nascimento”, a autora Maria Dolores narra que, ao saber da gravidez de Káritas, Milton assumiu a postura de um pai dedicado, preocupado, sentimental e coruja. “O menino chamou-se Pablo e ganhou de presente uma música com seu nome”, diz o livro.
A autora narra a passagem em que Milton quis levar o menino Pablo para uma apresentação de “Milagre dos peixes” para os estudantes da Faculdade de Arquitetura da USP, em um domingo de 1974. Mas Káritas, receosa pela segurança do filho, já que Milton e seu disco estavam na mira dos militares, não deixou. No show, para cerca de 10 mil pessoas, quando Milton cantou “Pablo”, várias pessoas da plateia ergueram seus filhos.
Káritas e Pablo moravam em São Paulo. O sucesso da gravação ao vivo de “Milagre dos peixes” na cidade fez com que o cerco se fechasse a Milton. Maria Dolores detalha que o então secretário de Segurança Pública de São Paulo, coronel Erasmo Dias, havia avisado que não queria Milton circulando por lá, até que fora proibido de pisar na cidade.
A autora da biografia de Milton narra que o músico foi ameaçado pelos militares e Pablo poderia sofrer consequências se ele continuasse a se apresentar na terra da garoa. “As autoridades sabiam da existência de Pablo, sua idade, o endereço, o telefone e tudo mais”, diz Maria Dolores.
Temendo o pior para sua família, Milton acatou a ameaça. “Que ninguém ficasse sabendo desse ‘pequeno acordo’. Bituca sofreu calado. Ameaçaram sequestrar o menino. Ele não podia dividir aquela dor com ninguém, pois qualquer um que soubesse da história correria risco também”, descreve a biógrafa.
Segundo o livro, Bituca arrumou as malas, voltou para o Rio e desapareceu da vida de Káritas e Pablo, perdendo contato com a companheira e com o menino. “Nunca mais se relacionou com o filho”, finaliza Maria Dolores.
SÉRIE DE REPORTAGENS
O Estado de Minas iniciou no domingo (4/6) a publicação da série de reportagens “O milagre de Milton”, sobre os 50 anos de lançamento do LP “Milagre dos peixes”. Lançado em 1973, o álbum tornou-se o grito de Milton Nascimento contra a censura vigente na ditadura militar. O sucessor do aclamado “Clube da Esquina” foi mutilado pelos censores, que vetaram os versos de três parcerias do cantor: “Os escravos de Jó” (com Fernando Brant), “Hoje é dia de El-Rey” (com Márcio Borges) e “Cadê” (com o cineasta Ruy Guerra). Milton Nascimento, então, preencheu as melodias com vocalises, gritos, falsetes e timbres que expressavam o que havia sido proibido.