A cena literária brasileira quase veio abaixo em novembro de 2019. A Festa Literária de Paraty havia anunciado que a homenageada da edição de 2020 seria a poeta norte-americana Elizabeth Bishop (1911-1979). A controvérsia era pautada por dois pontos: Bishop não é brasileira (seria a primeira vez que a Flip homenagearia um autor estrangeiro) e expressou simpatia pelo golpe que deu início à ditadura militar (1964-1985).
A polêmica se apoiou em trechos de cartas que Bishop enviou ao escritor Robert Lowell (1917-1977). "Foi uma revolução rápida e bonita... tudo terminado em menos de 48 horas", escreveu ela, em 4 de abril de 1964, três dias após o golpe que destituiu o presidente João Goulart. Há outras missivas do gênero, e as redes sociais, naquele início da gestão bolsonarista, fervilharam à época.
No mesmo período, o acadêmico norte-americano Thomas Travisano levava a cabo seu trabalho mais ambicioso em torno da poeta: a biografia "Love unknown: The life and worlds of Elizabeth Bishop", publicada nos Estados Unidos no final de 2019. Aos 71 anos, Travisano tem dedicado a maior parte de sua carreira a ela – é, inclusive, fundador da Elizabeth Bishop Society. É autor ou organizador de outros quatro títulos em torno da poeta, incluindo o que reúne sua intensa correspondência com Lowell.
Leia também: Pedro Nava: Depoimentos exclusivos homenageiam os 120 anos do escritor
Leia também: Pedro Nava: Depoimentos exclusivos homenageiam os 120 anos do escritor
Somente agora, três anos e meio depois da controvérsia, a obra ganha edição nacional, "Elizabeth Bishop: Uma biografia" (Companhia das Letras). Travisano espera que não seja tarde para que os leitores tenham nova perspectiva sobre a obra da poeta que amou o Brasil e viveu intensamente a realidade do país. A Flip, vale dizer, cancelou a homenagem em agosto de 2020, quando buscava se reinventar em meio à pandemia.
Vencedora do Prêmio Pulitzer em 1956 (por "North and South"), Bishop chegou ao Brasil em 1951. Ficaria apenas duas semanas, mas se apaixonou pelo país e pela arquiteta Lota de Macedo Soares (1910-1967), que idealizou o Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro. Viveu no Brasil até 1970 – em Petrópolis, no Rio e em Ouro Preto, na Casa Mariana, um imóvel colonial que recebeu o nome de sua mentora, a poeta Marianne Moore (1887-1972).
Solitária, depressiva, dependente de álcool. Muito das histórias contadas a respeito de Bishop chamam a atenção para esses aspectos. Travisano não diminui tais questões, mas apresenta outra perspectiva.
O autor dá bastante destaque para os anos difíceis iniciais. Bishop perdeu o pai e a mãe na infância. William Thomas Bishop morreu quando ela era um bebê; Gertrude Bulmer teve um colapso mental quando a filha tinha 5 anos, foi internada e nunca mais tornou a vê-la. A órfã sem irmãos foi criada por parentes próximos – o biógrafo levanta a hipótese de ela ter sido abusada por um tio.
A despeito dos traumas e da saúde frágil, o que emerge da biografia é uma personagem que teve uma vida completa, com seus altos e baixos (muitos, vale dizer). "Alguns livros a apresentaram como vítima. Bishop era uma pessoa aventureira, que correu vários riscos e viveu exatamente como quis", afirma Travisano em entrevista ao Estado de Minas. Leia a seguir.
Qual foi a impressão que o senhor teve no primeiro e único encontro com Bishop?
Ela fez uma leitura na Universidade da Virginia (onde Travisano fez seu mestrado e doutorado). Meus professores programaram um encontro meu e de outras pessoas após a leitura. Conversamos por cerca de duas horas. Ela foi muito engraçada - e esta foi a minha impressão mais forte.
Também a de que queria deixar claro quais eram suas opiniões. De certa maneira, a poesia dela era diferente da persona. Ela era gay e isto, na época, não era público. Poderíamos dizer que era um segredo aberto: as pessoas sabiam, mas não falavam sobre. Ela sabia que eu estava fazendo uma tese sobre ela.
E senti que ela sentiu que eu sabia coisas sobre ela. Mas ela não sabia o que eu sabia. Mesmo engraçada, foi também muito cautelosa. O humor pode ser visto como uma forma de proteção. Mais tarde, me tornei amigo de vários de seus amigos, tanto em Harvard quanto no Brasil e em Key West, onde ela viveu.
Também, durante um período, fui um dos proprietários da casa em que ela cresceu na Nova Escócia (Canadá). Todos estes lugares e conexões fizeram com que ela se tornasse pessoal para mim.
Também a de que queria deixar claro quais eram suas opiniões. De certa maneira, a poesia dela era diferente da persona. Ela era gay e isto, na época, não era público. Poderíamos dizer que era um segredo aberto: as pessoas sabiam, mas não falavam sobre. Ela sabia que eu estava fazendo uma tese sobre ela.
E senti que ela sentiu que eu sabia coisas sobre ela. Mas ela não sabia o que eu sabia. Mesmo engraçada, foi também muito cautelosa. O humor pode ser visto como uma forma de proteção. Mais tarde, me tornei amigo de vários de seus amigos, tanto em Harvard quanto no Brasil e em Key West, onde ela viveu.
Também, durante um período, fui um dos proprietários da casa em que ela cresceu na Nova Escócia (Canadá). Todos estes lugares e conexões fizeram com que ela se tornasse pessoal para mim.
Chegaram a trocar cartas?
Sim, e tenho uma história sobre isto. As cartas dela para Marianne Moore estavam disponíveis em uma biblioteca da Filadélfia (Rosenbach Museum & Library). Escrevi a ela dizendo que iria para a Filadélfia e leria as cartas. Cheguei numa quarta-feira, li algumas cartas e, como não deixavam fazer cópias, você tinha que escrever à mão.
Na sexta-feira, antes do almoço, o curador me disse que havia recebido um telefonema da Elizabeth Bishop restringindo o acesso. Eu estava interessado nas cartas iniciais que ela mandou porque foi ali que disse a Marianne Moore quais eram os princípios da sua poesia. Depois, escrevi a Bishop pedindo permissão para ter acesso a elas. Ela respondeu: 'Bem, me disseram que se eu deixasse uma pessoa, teria que dar permissão a todo mundo. Mesmo que eu tenha gostado de você, minha resposta é não'.
Quando o senhor finalmente teve acesso à correspondência completa?
Depois que ela morreu, as restrições acabaram. Voltei à Filadélfia cinco ou seis anos mais tarde. Quando li todo o material, entendi que realmente tinha conseguido o mais importante na primeira vez. O que aconteceu comigo era bem característico da Bishop. Mostrou também quão ingênuo eu era na época, ao contar a ela o que iria fazer.
Com a biografia o senhor pretendeu tirar a sombra do alcoolismo e da solidão que marcaram relatos biográficos anteriores?
Alguns dos títulos anteriores traziam boas informações, mas tendiam a apresentá-la como vítima, uma figura passiva. O que eu via era uma pessoa aventureira, que correu vários riscos e viveu exatamente como quis. Isto ela até nos contou, seja por meio de sua poesia e em uma carta que escreveu quando adolescente. Estas questões me convenceram de que ela realmente foi agente de sua própria existência. Não era perfeita, mas fez o que quis, mesmo tendo asma, eczema e outras condições crônicas.
O lesbianismo foi uma questão central na obra de Bishop. A sexualidade dela é uma chave para entender sua poesia?
Não é a única, mas é uma chave importante. Estimaria que 40% dos poemas são, de alguma forma, sobre o amor lésbico. Se você tem consciência disto, não é preciso ser um gênio da poesia para encontrá-los. Ela disfarça isto evitando pronomes de gênero e raramente usa a palavra amor. Geralmente usa amigo ou algo do gênero.
Outra estratégia é usar uma série de referências pessoais através do (pronome) nós. O leitor se pergunta: 'Quem somos nós? Por que o nós está sendo usado ali?' Pistas como estas nos ajudam a compreender os poemas e entender como a sexualidade é uma força motriz no trabalho dela.
O Brasil foi essencial para a vida pessoal de Bishop. Para a carreira literária também?
Absolutamente. Em um levantamento que fiz, 24 dos 100 poemas que ela publicou em vida eram sobre o Brasil. Ou seja, um quarto. Se você olhar para os não publicados, tem ainda mais. E ela chegou ao Brasil aos 40 anos, então essa contagem só vale para o que publicou depois disto. Ela também traduziu “Minha vida de menina” (da escritora mineira Helena Morley), cuja narrativa ela relacionou com a própria infância na Nova Escócia, tinha planos de escrever “Black beans and diamonds” (feijões e diamantes), sobre suas viagens pelo país.
Como o senhor analisa a polêmica suscitada pela decisão da Flip de 2020 de homenagear Bishop?
Há dois fatos aqui: Bishop não era brasileira e foi vista como apoiadora do Golpe de 1964. É tudo muito complicado, mas entendo o que aconteceu. Ao mesmo tempo, ela foi uma poeta muito importante, que escreveu poemas realmente importantes sobre o Brasil. E fez também traduções fabulosas; a de Drummond, em particular, é muito boa.
Coeditou uma antologia da poesia brasileira no século 20 que, para muitos norte-americanos, serviu como uma introdução à produção poética do Brasil. Acho que a questão sobre o apoio dela ao golpe foi exagerada. Ela nunca deu uma declaração pública sobre isto. Escreveu cartas a Robert Lowell em que fazia um apoio sem grande entusiasmo ao golpe por causa da Lota. Lota trabalhava no Parque do Flamengo com o (Carlos) Lacerda, que era a favor dos militares.
Então Lota ficou a favor, e Bishop, por conta dela, também. Mas rapidamente ela ficou desencantada com Lacerda, disse que ele estava ficando muito próximo do macarthismo por sua oposição ao comunismo. Na poesia, mostrou profunda simpatia pelos pobres, em especial em poemas como “O ladrão da Babilônia”. Ou seja, ela não podia ser anti-golpe diante do contexto em que vivia. Tenho consciência de que o governo militar fez coisas horríveis no Brasil, então o ressentimento sobre o período é compreensível. Mas Bishop não tinha consciência da direção que as coisas iriam tomar.
O senhor acredita que a chegada de sua biografia agora ao Brasil, três anos após a polêmica, possa trazer uma nova leitura sobre a relação de Bishop com o país?
Espero que sim. Se ele tivesse saído no Brasil na época da polêmica, poderia ter dado outra perspectiva. Espero que agora não seja tarde. Acho que algumas pessoas vão ler a biografia por causa da controvérsia. Como resultado, saberão mais sobre Bishop. Escrevi o livro também sabendo que teria leitores brasileiros.
Não é que ela tenha amado tudo no país, ninguém espera isso. Ela também criticou demais os EUA. As pessoas devem entender quão complicada era a situação dela. Por outro lado, ela se comprometeu com o país, era fascinada pela música, comida, arte, natureza. Uma coisa que as pessoas diminuem é o tempo dela no país.
Falam que foram 15 anos, mas foram 23. Ela chegou no Brasil em 1951 e sua última visita foi em 1974. Em 1970, ela começou a dar aulas em Harvard, mas manteve a casa em Ouro Preto até 1974. Nas férias, sempre ia para o Brasil. Ou seja, foi um tempo muito longo no país.
Não é que ela tenha amado tudo no país, ninguém espera isso. Ela também criticou demais os EUA. As pessoas devem entender quão complicada era a situação dela. Por outro lado, ela se comprometeu com o país, era fascinada pela música, comida, arte, natureza. Uma coisa que as pessoas diminuem é o tempo dela no país.
Falam que foram 15 anos, mas foram 23. Ela chegou no Brasil em 1951 e sua última visita foi em 1974. Em 1970, ela começou a dar aulas em Harvard, mas manteve a casa em Ouro Preto até 1974. Nas férias, sempre ia para o Brasil. Ou seja, foi um tempo muito longo no país.
“ELIZABETH BISHOP: UMA BIOGRAFIA”
• Thomas Travisano
• Tradução: Luiz A. de Araújo
• Companhia das Letras (536 págs.)
• R$ 129,90 (livro) e R$ 44,90 (e-book)
Sign in with Google
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do Estado de Minas.
Leia 0 comentários
*Para comentar, faça seu login ou assine