A atriz Rosana Stavis no palco em cena de 'A aforista'

Rosana Stavis contracena com dois pianistas cuja música executada ao vivo evoca lembranças que povoam a mente da personagem

Renato Mangolin / divulgação

Enquanto caminha rumo ao enterro de um antigo colega da faculdade de música, mulher é tomada por um fluxo de consciência caudaloso e ininterrupto. Como diz o diretor e dramaturgo Marcos Damaceno, o pensamento é o lugar onde se passa a peça “A Aforista”, estrelada por sua companheira, Rosana Stavis, que entra em cartaz na próxima sexta-feira (9/6), no Teatro 1 do CCBB-BH, onde cumpre temporada até o dia 3 de julho.

O espetáculo é a segunda parte de uma trilogia iniciada há 15 anos – com “Árvores abatidas ou para Luís Melo”, da curitibana Cia. Stavis-Damaceno, criada pelo casal há duas décadas – e que tem como eixo central a obra do escritor austríaco Thomas Bernhard (1931-1989). Ambas as montagens partem de textos escritos por Damaceno em diálogo com os livros do autor que é um dos nomes de destaque da literatura em língua alemã da segunda metade do século 20.

“O náufrago”, cuja primeira edição é de 1983, é a principal referência para “A Aforista”. O espetáculo propõe ao público a observação da mente da personagem-título. Sobressaem em suas reflexões o ritmo vertiginoso, o excesso de informações, as digressões, a confusão na linguagem, tudo temperado com boas doses de ansiedade e perturbação.

Diálogo com Thomas Bernhard

Quais são as nossas escolhas? Que decisões tomamos? Que caminhos seguimos? Como lidamos com nossos sonhos, desejos e sentimentos? Essas são algumas das indagações que norteiam o pensamento da Aforista, segundo Damaceno. Ele diz que o espetáculo nasceu de um desejo de montar um monólogo e, a partir desse desejo, do reencontro com a obra de Bernhard.

“Ele foi um autor bastante polêmico e bastante contundente. 'Árvores abatidas' foi nosso espetáculo de maior repercussão ao longo desses 20 anos de companhia. Como daquela vez, o que fiz agora não é uma adaptação, mas um diálogo com a obra de Bernhard, que é muito densa e nos serviu à criação de algo original, novo. Parti de 'O náufrago', mas quando a gente senta para escrever, a imaginação desvia, vai para outro lugar. O que permanece é o estilo seco e direto, característico de Bernhard”, afirma.

O diretor e dramaturgo diz se identificar com a escrita do autor austríaco. Ele acredita haver um paralelo, em termos das relações interpessoais, entre Viena, onde Bernhard produziu parte de sua obra, e Curitiba, na medida em que são, ambas, cidades “frias, úmidas, hostis”. Damaceno observa que os textos do escritor em que baseia sua nova montagem são provocativos, às vezes muito angustiantes e, em outros momentos, também muito hilariantes.

“É um estilo que considero excitante. Era um autor que atacava as hipocrisias, os cinismos, as mesquinharias, mas, com esse ataque, ele abria novas percepções sobre a vida, sobre as relações entre as pessoas, em favor de uma humanidade mais verdadeira, mais íntegra. Seus textos trabalham muito com as repetições, as variações, indo, às vezes, de pensamentos sublimes a colocações grotescas”, diz.
 

'Os dois pianos estão ali como personagens mesmo, e a música sublinha os devaneios da Aforista, porque toda a peça se passa na mente dela. Nossos espetáculos têm essa característica, a mente é o motor, o centro de tudo o que acontece. O que está em movimento são os pensamentos. É uma peça muito rápida, ágil, o que cria um equivalente artístico com o que somos, com nossas perturbações e ansiedades, com os excessos que estão na cabeça de todos nós'

Marcos Damaceno, dramaturgo e diretor

 

Duelo de pianos

A música cumpre papel de destaque no espetáculo. Rosana Stavis é acompanhada por dois pianos tocados ao vivo – por Sergio Justen e Rodrigo Henrique – que duelam no palco e dão o tom da narrativa, com a trilha original criada pelo compositor Gilson Fukushima.
 
“A música é um personagem que conversa com a Aforista, ela está inserida em todos os estágios mentais dessa personagem. A maneira como a música foi composta está diretamente relacionada com a dramaturgia”, comenta Rosana.

A peça apresenta como um dos personagens centrais o famoso pianista John Marcos Martins. Outro pianista, Polacoviski, tem um destino trágico. A narrativa desenvolve-se a partir das lembranças, pensamentos e imaginação da terceira personagem, a narradora, amiga de John Marcos Martins e de Polacoviski, e por eles apelidada de Aforista.
 
A narradora está sempre andando e, enquanto caminha, pensa em como se deu tudo. Sua relação com seus antigos amigos de faculdade, o percurso que cada um seguiu, onde esses caminhos os levaram e o quanto esses trajetos influenciaram a vida uns dos outros. Damaceno pontua que o universo da peça é o da música erudita.

“Os dois pianos estão ali como personagens mesmo, e a música sublinha os devaneios da Aforista, porque toda a peça se passa na mente dela. Nossos espetáculos têm essa característica, a mente é o motor, o centro de tudo o que acontece. O que está em movimento são os pensamentos. É uma peça muito rápida, ágil, o que cria um equivalente artístico com o que somos, com nossas perturbações e ansiedades, com os excessos que estão na cabeça de todos nós”, ressalta.
 

Rosana diz que o que mais lhe chama a atenção no texto do companheiro é também o maior desafio da atuação: a verborragia. “Ela fala sobre muita coisa ao mesmo tempo, desvia o pensamento rapidamente de um assunto para o outro. Esse caos mental foi um desafio grande para criar essa personagem. Ao mesmo tempo, isso é o que deixa tudo muito interessante; ela enlouquece o público, que sai do espetáculo também com essa cabeça caótica”, aponta.
 
Ela considera que o período da pandemia acentuou um estado mental de inquietação, com uma confusão de pensamentos e de sentimentos. A atriz aponta que não só os dois pianos, mas também a luz e o figurino, que se confunde com o cenário, criando uma espécie de instalação, conversam com a mente de sua personagem. “Tudo ali está a serviço desse fluxo de ideias”, diz.
 

'Ela fala sobre muita coisa ao mesmo tempo, desvia o pensamento rapidamente de um assunto para o outro. Esse caos mental foi um desafio grande para criar essa personagem. Ao mesmo tempo, isso é o que deixa tudo muito interessante; ela enlouquece o público, que sai do espetáculo também com essa cabeça caótica'

Rosana Stavis, atriz

 

Colecionadora de aforismos

O apelido da personagem não é em vão, de acordo com Damaceno. O aforismo é uma máxima ou sentença que em poucas palavras contém uma regra ou um princípio de alcance moral, como quando Nietzsche diz que “a vida sem música seria um erro”.
 
“Ela é uma colecionadora dessas máximas, por meio das quais tenta ordenar o pensamento. Mas o aforismo é o mais pretensioso dos recursos literários, porque ambiciona em uma ou duas linhas dar conta da vida e do mundo”, diz o diretor e dramaturgo.

Sobre a concepção cênica que dialoga com a cabeça da personagem, ele observa que, no geral, os espetáculos da Cia. Stavis-Damaceno têm como foco a palavra, o texto, o que se relaciona com sua paixão pelo trabalho do ator.
 
“Muito do que eu crio me vem em sonhos, e eu sonhei com uma cena da Rosana com muitos pianos. Trabalhar com dois foi o possível, o que a gente conseguiu fazer. Todo o resto funciona como moldura para a encenação, especialmente esse figurino, destaca.

Estética do frio

Ele aponta que os espetáculos da companhia se valem de uma ambientação e de um visual bastante característicos, representativos do que chama de uma “estética do frio”. “É algo que reflete um pouco o que é o Sul do país, essa coisa meio avessa à ideia de um Brasil tropical. A gente também brinca com isso no texto. Curitiba, assim como as outras cidades da região, é mais fria, mais escura, mais embolorada, não tem muita cor, então tem mais melancolia e mais introspecção. A estética dos nossos espetáculos é representativa da nossa região”, afirma.


Segundo ele, “A Aforista” foi o espetáculo que mais demandou dedicação – começou a ser escrito durante a pandemia e foi sendo burilado ao longo de um ano. “Fizemos com a expectativa de que fosse o nosso melhor espetáculo”, diz. A peça já passou por Rio de Janeiro, Brasília e São Paulo, e o retorno tem sido o melhor possível, conforme o diretor.

“As pessoas ficam muito impressionadas, saem do teatro com os olhos arregalados e a respiração presa. A peça fala de suicídio também, mas ela enche o público de vida, de ânimo, de entusiasmo. Quem vai assistir sai se sentindo mais vivo, querendo realizar, fazer as coisas. É importante a gente estar com os olhos brilhando, instigado com o que vê e ouve, e é esse efeito que 'A Aforista' quer causar nas pessoas.”

Ele diz que, assim como o primeiro espetáculo da trilogia, que passou por Belo Horizonte em 2014, “A Aforista” pode levar a plateia do riso ao choro em uma virada de chave.
 
“É um texto que conduz as pessoas por várias emoções. O teatro sempre fala das relações entre as pessoas; dentre as artes, é a que mais se ocupa disso. O lugar por onde a gente mais passeia é dentro da própria cabeça, dos pensamentos, e essa é uma peça sobre saber lidar com nossos pensamentos e nossos sentimentos”, pontua.

Sobre o fechamento da trilogia, ele diz que, por enquanto, o que existe é apenas o desejo de seguir trabalhando sob a inspiração do escritor austríaco. “Sempre que mergulhamos em Thomas Bernhard, voltamos à superfície com bastante êxito, então existe essa vontade de um terceiro espetáculo a partir da obra dele, mas é algo ainda distante no horizonte”, afirma.

“A AFORISTA”

• Estreia nesta sexta-feira (9/6), com sessões de sexta a segunda, sempre às 20h30, até 3/7, no Teatro 1 do CCBB-BH (Praça da Liberdade, 450, Funcionários, 31.3431-9400)
• Ingressos a R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia), à venda no site e na bilheteria do CCBB-BH.
• Em 24/6 haverá sessão acessível em audiodescrição e bate-papo após o espetáculo.