O filósofo e teólogo dinamarquês Soren Kierkegaard (1813-1855) dizia que “a vida só pode ser compreendida em retrospecto, no entanto, deve ser vivida olhando para a frente”. A máxima kierkegaardiana talvez seja a melhor síntese do argumento de “Corpolítica”, documentário de Pedro Henrique França, com produção de Marco Pigossi, que estreia nesta quinta-feira (8/6) nos cinemas, ocupando em Belo Horizonte uma sala do UNA Cine Belas Artes.





Em aproximadamente uma hora e quarenta minutos, o filme se propõe a investigar o que motivou o recorde de candidaturas LGBTQIA+ nas eleições municipais de 2020, em contraste com a pequena representação dessa comunidade que ainda marca o cenário político brasileiro. 

Na época, 435 nomes LGBTQIA disputaram alguma vaga no executivo ou legislativo municipal, um aumento de 58,85% em relação aos 256 candidatos de 2016. Entretanto, desses 435 postulantes a um cargo representativo, apenas 48 conseguiram se eleger.

“Quando vi a notícia sobre o recorde de candidaturas, fiquei surpreso. A gente estava na pandemia, vivendo um ano e meio de governo Bolsonaro, que já tinha um histórico de declarações lgbtfóbicas em toda a sua carreira. Então, o seria isso? Uma reação?”, afirma o diretor.





Amigo de Marco Pigossi, Pedro Henrique França telefonou para o ator e disse que estava com a ideia de fazer um documentário que abordasse o tema, trazendo para a frente das câmeras lésbicas, gays, bissexuais e transsexuais que disputaram a eleição naquele ano, enfrentando todo um status quo da política partidária brasileira, composta majoritariamente por homens heterossexuais e brancos.

Recordes

“A gente, conversando sobre isso, teve essa curiosidade de entender o que era esse movimento e de onde vinha isso. Principalmente, depois da eleição de 2018 e de quase dois anos de violências explícitas às minorias em geral: aos corpos pretos, aos corpos trans e aos corpos gays”, afirma Pigossi. 

“Foi um momento de quase incentivo à violência. Era uma legitimação da violência em cima desses corpos e, de repente, a gente tem uma notícia de que no Brasil havia um recorde de candidaturas LGBTQIA ”, comenta, lembrando que o Brasil é o país em que mais se matam pessoas LGBTQIA no mundo.




 

 

A ideia inicial, lembra ele, era acompanhar todas as candidaturas no país. Contudo, por questões logísticas, orçamentárias e também sanitárias - tratava-se de julho de 2020, época em que o Brasil registrava cerca de mil mortes diárias decorrentes da COVID-19 -, o escopo de personagens precisou ser reduzido, concentrando-se apenas no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Decidido o recorte do documentário, França e Pigossi começaram a procurar personagens que se identificassem com ao menos uma das quatro primeiras letras da sigla LGBTQIA (lésbicas, gays, bissexuais e transsexuais). 

Em São Paulo, os escolhidos foram o jornalista William De Lucca e Erika Hilton, primeira mulher trans eleita deputada federal no estado. Já no Rio de Janeiro o longa acompanhou a atriz Andréa Bak e Mônica Benício, viúva de Marielle Franco. Entre os quatro, somente Erika e Mônica foram eleitas.





"A gente ficou pensando muito em quem seriam os personagens, porque, para mim, obviamente, interessava ter alguém que fosse eleito. Como é que eu terminaria esse filme com quatro candidatos derrotados? Seria horrível”, afirma o cineasta. “Então também teve um lugar estratégico nesse sentido de pensar em pessoas que poderiam ganhar - mas as quatro pessoas, para mim, poderiam estar lá”, comenta.

Alternando cenas dos quatro candidatos em campanha política nas ruas de suas respectivas cidades e entrevistas realizadas dentro de casa, “Corpolítica” apresenta ao espectador a história de todos eles.

As trajetórias dos quatro são radicalmente diferentes. De Lucca, por exemplo, não teve sua sexualidade contestada pela família, enquanto Erika foi expulsa de casa cedo e se sustentou com a prática da prostituição. No entanto, ambos foram vítimas de preconceito, em algum momento da vida, e atestam que, nos últimos anos, durante a presidência de Jair Bolsonaro, a violência contra a comunidade LGBTQIA aumentou.





Erika Hilton afirma, em determinado momento do filme: “Esse governo nos movimenta. Não vamos mais ser humilhados e escrachados em praça pública. Não vamos mais virar estatística”.

“Eu amo essa fala dela”, ressalta Pigossi. “Acho que foi uma grande sacada do Pedro humanizar essas pessoas, trazendo-as para a frente da tela junto com seus familiares”, emenda.

A explicação do diretor para essa escolha, no entanto, é bem simples: “Para nós, LGBTQIA , o ponto de partida é nossa própria casa. É ali que a gente se desenvolve e, na maioria das vezes, também é ali que o preconceito começa”, afirma.
 
Leia também: Lua Zanella fala de sua luta como artista LGBTQIA+

Progressista

Evidentemente, “Corpolítica” assume um viés político progressista, indo ao encontro das ideias dos personagens que protagonizam o filme - De Lucca, Erika, Andréa e Mônica se candidataram por partidos de esquerda. 

Contudo, houve espaço para o contraditório por meio dos depoimentos de Fernando Holiday (Republicanos-SP) e Thammy Miranda (PL-SP), ambos vereadores de São Paulo, que, embora integrem a comunidade LGBTQIA , não têm como bandeira as pautas identitárias. Holiday, inclusive, é um dos principais apoiadores de Bolsonaro em São Paulo, enquanto Thammy é filiado ao partido do ex-presidente.





“Desde sempre a gente queria ter opiniões divergentes. A gente queria, por exemplo, entender a figura do Fernando Holiday, um homem negro, gay, na Câmara Municipal de São Paulo. Porque a identidade não pode ser uma alegoria, ela tem a representatividade e um comprometimento com o seu lastro histórico, de onde você veio, para onde você vai, quem se identifica com você”, diz o diretor.

“O que você faz, cada escolha sua e com quem você anda diz muito sobre você e sobre qual o seu comprometimento na luta, a que interesses você está servindo”, opina.

Vencedor dos prêmios Queer Lisboa, na categoria de melhor documentário, e da categoria roteiro no Festival Internacional de Cinema de Brasília; “Corpolítica” não foi um filme fácil de gravar, lembra Pigossi. Afinal, representatividade gay na política não é um tema que abra portas de patrocinadores. 

Sem apoio de grandes marcas ou canais, França e Pigossi esperam o retorno das bilheterias. “O número de bilheteria diz muito sobre a vida do filme pós-lançamento. Por isso a gente espera que as pessoas possam ir aos cinemas prestigiar esse trabalho e essas pessoas que estão na linha de frente por todos nós, não só da comunidade LGBTQIA , mas por todos que sofrem algum tipo de violência”, conclui Pigossi.

“CORPOLÍTICA”

(Brasil, 102min). Direção: Pedro Henrique França. Documentário. Em cartaz a partir desta quinta-feira (8/6), no UNA Cine Belas Artes (Sala 1, às 18h).

compartilhe