Gabriel de Sá
Especial para o EM
Sucessor do emblemático “Clube da Esquina”, “Milagre dos peixes” tornou-se o grito de liberdade de Milton Nascimento contra o regime militar. O disco lançado em 1973 teve três de suas músicas vetadas pela censura prévia, mas o artista resolveu lançar o álbum com as versões instrumentais de “Os escravos de Jó” (parceria dele com Márcio Borges), “Cadê” (com Ruy Guerra) e “Hoje é dia de El-Rey” (com Márcio Borges), como mostra a série de reportagens publicada pelo Estado de Minas desde domingo (4/6).
O prestígio de Milton entre crítica e público era tamanho que sua gravadora, a Odeon, investiu nas melhores condições técnicas para a gravação de “Milagre dos peixes”. Além disso, no ano seguinte, o cantor e compositor pôde registrar o álbum em versão ao vivo, com o acompanhamento de uma orquestra sinfônica e do grupo Som Imaginário.
Após demorada reforma, o Theatro Municipal de São Paulo recebeu o show “Milagre dos peixes ao vivo”, que seria lançado em LP em 1974. Gravado em 7 e 8 de maio, este álbum é creditado a Milton Nascimento e o Som Imaginário. Sim, o grupo criado no fim dos anos 1960 para acompanhar Bituca nos palcos estava de volta. Wagner Tiso (piano), Toninho Horta (guitarra), Robertinho Silva (bateria) e Luiz Alves (baixo), os mesmos músicos que gravaram o antológico “Clube da Esquina” em 1972, participaram do álbum ao vivo.
Foi nesse período que Milton incorporou à indumentária o estiloso boné de maquinista que o acompanhou por muitos anos. “Se não me engano, foi a primeira apresentação de música popular no palco do Municipal”, observa o compositor Márcio Borges.
Dos músicos que estiveram no estúdio em 1973, ficaram de fora Naná Vasconcelos, Novelli e Nelson Angelo. Mas Nivaldo Ornelas seguiu nas apresentações do disco, empunhando sax e flauta, integrando a banda Som Imaginário nos anos seguintes.
Amigos dos tempos de BH, Márcio Borges e Sérvulo Siqueira filmaram o concerto do Theatro Municipal. Com duas câmeras, gravador Nagra e pequena equipe de produção, a dupla tinha a intenção de lançar o material como documentário. Contudo, a falta de recursos financeiros, segundo Borges, impediu que a produção fosse finalizada como a dupla planejou.
Os direitos das filmagens, assim como os negativos, pertencem hoje a Sérvulo Siqueira. Borges cedeu integralmente a coautoria do filme ao colega. “Ele produziu algumas montagens desse filme, vendeu o material para universidades no exterior, mas não tenho muito mais ideia do que aconteceu”, detalha Borges. “Nunca mais vi esse documentário.”
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No site de Siqueira (guesaaudiovisual.com), está a versão de 72 minutos da película disponível para o público. Em texto publicado no portal, Siqueira diz que entre 1974 e 1975, os negativos da filmagem ficaram 11 meses na geladeira da casa de Borges sem serem revelados, até que ele pegou empréstimo de um banco e concluiu o corte de 35 minutos do projeto. Esse filme, segundo o site, rodou cineclubes, festivais e o circuito universitário na década de 1970. A versão disponível no site, repleta de imagens pouco conhecidas, é dos anos 2000.
Sérvulo Siqueira relatou, por e-mail, que o filme “Milagre dos peixes” tem sido objeto de sua atenção nos últimos 49 anos. “Ao longo de todo esse tempo, fiz seis versões, sendo que a última é a mais completa e abrangente”, informou ele. “Dado o longo tempo decorrido e a dificuldade para lançar o trabalho, decidi também contar a história dos meus esforços para preservá-lo e concluí-lo em um livro de quase 200 páginas”, afirmou Siqueira. “Milagre dos peixes ao vivo: o livro do filme” está à venda no site Estante Virtual.
Você não tem alegria
Ali, no palco do Theatro Municipal, sob a tensão dos anos de chumbo, o público pôde presenciar o vigor e a densidade daquelas canções em volume máximo: “Sacramento”, “Tema dos deuses”, “A última sessão de música”, e, claro, “Milagre dos peixes”. À ausência de Nico Borges, foi Milton quem falseteou tal qual menino os versos de “Pablo”.
O artista cantou também a soturna “Bodas”, parceria dele com Ruy Guerra. “Chegou no porto um canhão/ De repente matou tudo, tudo, tudo”, diz a letra, indicando a atmosfera árida que pairava sobre o Brasil daqueles dias. Mas a censurada “Cadê”, de Milton e Guerra, ficou fora do disco ao vivo, assim como “Os escravos de Jó”.
“Hoje é dia de El-Rey”, por outro lado, ganhou uma bela versão ao vivo, com destaque para os solos furiosos do sax de Nivaldo Ornelas. A composição, cuja letra de Márcio Borges havia sido censurada, é seguida, no disco, pela releitura de “Sabe você”, de Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, em que Milton entoa: “Você não tem alegria/ Nunca fez uma canção/ Por isso a minha poesia/ Ah, você não rouba, não”. Provocação genial de um artista que sempre se expressou melhor pela música.
Além das composições de “Milagre dos peixes”, algumas das canções mais marcantes do disco “Clube da Esquina” foram registradas ao vivo pela primeira vez na voz de seu criador. Estavam ali no palco do Municipal as já clássicas “Cais”, “Nada será como antes” e “San Vicente”.
Os arranjos criados por Wagner Tiso para o disco de estúdio foram transformados, na versão ao vivo, para abraçar o acompanhamento de uma grande orquestra, regida pelo maestro Paulo Moura. “Lembro-me de que levamos de trem, do Rio de Janeiro, o naipe de cordas para gravar em São Paulo”, relata Tiso, presente em ambos os LPs.
“Esses dois discos foram muito bonitos de gravar. Na música popular, o movimento de acordes é muito simples. Mas Bituca não se preocupava com isso: ele queria trazer a qualidade, o valor da música, dos movimentos harmônicos, da sequência de acordes. Queria se mostrar como ele é, não algo só para fazer sucesso”, sentencia o pianista e maestro.
Alguns dias depois do concerto no Municipal, a trupe se apresentou no câmpus da Universidade de São Paulo (USP).
Márcio Borges, que também filmou esse show, conta que o evento foi inesquecível. “A juventude espalhada pela grama, em cima das árvores, aquela multidão colorida”, relembra. “Do lado de fora do câmpus, dezenas de viaturas policiais ficavam circulando e observando. Mas não invadiram”.
LEIA NA SEXTA (9/6) Na década de 1970, os anos de chumbo da ditadura militar brasileira, Milton Nascimento foi vigiado de perto por agentes do Serviço Nacional de Informações (SNI)
SÉRIE DE REPORTAGENS
O EM publica desde domingo a série de reportagens O milagre de Milton”, sobre os 50 anos do LP “Milagre dos peixes”. Lançado em 1973, o álbum tornou-se o grito de Milton Nascimento contra a censura vigente na ditadura militar. O sucessor do aclamado “Clube da Esquina” foi mutilado pelos censores, que vetaram os versos de três parcerias do cantor: “Os escravos de Jó” (com Fernando Brant), “Hoje é dia de El-Rey” (com Márcio Borges) e “Cadê” (com o cineasta Ruy Guerra). Milton, então, preencheu as melodias com vocalises, gritos, falsetes e timbres que expressavam o que havia sido proibido. As reportagens já publicadas podem ser lidas no em.com.br
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