Gabriel de Sá
Especial para o EM

 
Ao gravar e lançar o disco “Milagre dos peixes” em 1973, Milton Nascimento comprou uma briga incômoda com a ditadura militar. O Brasil vivia os “anos de chumbo” sob a mão de ferro do general Emílio Garrastazu Médici.



Três canções do álbum tiveram suas letras vetadas pela censura prévia, mas Milton e a gravadora Odeon decidiram bancar o projeto. O trabalho, um dos mais experimentais e ousados da carreira do cantor e compositor, veio a público há 50 anos com versões instrumentais das músicas censuradas. A tensão entre o artista e o regime se intensificou a partir daquele momento.
Entretanto, Milton já era observado pelos militares desde pelo menos 1968, quando participou de um “show de cunho subversivo na PUC”. A informação está destacada em relatório da agência central do Serviço Nacional de Informações (SNI), carimbado como confidencial e datado de 14 de março de 1977. Localizado pelo Estado de Minas no acervo digital do Arquivo Nacional, o documento revela como Milton Nascimento era visto pelo regime de exceção.
 

Relatório do SNI revela que Bituca era observado pelo regime desde 1968

(foto: Reprodução/Arquivo Nacional)
 
 
Sob a alegação de que o nome do “cantor popular” havia sido cogitado para um show em Brasília, contratado pelo departamento de Turismo do DF e pela TV Globo, o SNI apresentou um dossiê sobre Milton ao requerente, não especificado, que fizera a solicitação por telefone.



No relatório do SNI, são destacadas algumas passagens da carreira de Milton para justificar o parecer. Em uma delas, lê-se que, em setembro de 1971, o cantor e mais 18 compositores recusaram-se a participar do VI Festival Internacional da Canção a fim de protestar contra o Serviço Federal de Censura.
 

(foto: Reprodução/Arquivo Nacional)
 
 
“Na verdade, pretendiam tais artistas populares, já classificados como pertencentes à esquerda festiva, a esvaziar o FIC, às vésperas de sua realização, para obter repercussão no âmbito nacional e internacional, jogando os afeiçoados da música contra a censura”, diz o documento.
 

(foto: Reprodução/Arquivo Nacional)
 
 
Outro ponto indicado pelo SNI é que, em novembro de 1972, Milton havia promovido, ao lado de Chico Buarque “e outros cantores hostis ao governo da Revolução de 1964”, apresentações para o movimento estudantil. “Oportunidades em que puderam manter os estudantes em permanentes expectativas políticas e sob influência de um proselitismo político subliminar e desagregador, por intermédio de canções populares de conteúdo ideológico”, segue o texto.




 

(foto: Reprodução/Arquivo Nacional)
 
 
Milton teria também, conforme o dossiê, cantado no show “Direitos Humanos no Banquete dos Mendigos” no dia 10 de dezembro de 1973, no Rio de Janeiro, uma canção de sua autoria sem autorização da censura prévia. Já nos dias 14 e 26 de outubro de 1974, Milton participou, com “Francisco Buarque de Holanda” e outros artistas, dos “círculos artístico-teatrais-pró-reeleição” do então deputado Lysâneas Maciel. Por fim, em janeiro de 1977, seu nome constou entre os “intelectuais” signatários de manifesto “protestando contra a ação da censura federal”.
 
A canção “Morro Velho”, que Milton apresentou ao Brasil ao lado de “Travessia e “Maria minha fé” no FIC de 1967, é alvo de uma análise dos oficiais. “(A obra) enaltece a luta de classe sob o título de a ‘Escola da Desigualdade’, isto é, as diferenças qualitativas das escolas privadas (para o filho do rico), sobre as consideradas públicas (para o filho do pobre), a provocar homens como o ‘filho do sinhô’ que se tornou doutor para mandar e do pobre, sem oportunidade na sociedade, que volta a trabalhar com a enxada, após um estudo deficitário e de baixa qualidade”, informa o registro.
 
A conclusão do órgão foi a seguinte: “Observa-se que, não obstante os dotes artísticos de Milton Nascimento, trata-se de cantor engajado no trabalho político-ideológico de descaracterização da música popular brasileira, cujo militante principal identifica-se com a figura de Francisco Buarque de Holanda, fato que não aconselha o dispêndio do dinheiro público com a sua promoção artística”.



Chama a atenção no relatório do SNI o destaque dado à ligação de Milton Nascimento com Chico Buarque, referido no documento por seu nome completo. Chico era tido como subversivo, versão amplamente difundida entre os militares, e foi o artista da música popular brasileira mais censurado e perseguido pela ditadura militar. Ele se autoexilou na Itália no fim dos 1960 e retornou ao país no começo da década seguinte.
 
O compositor carioca é autor de “Cálice”, parceria com Gilberto Gil, crítica contundente ao regime que foi vetada pela censura em 1973 e ganhou gravação definitiva, ao lado de Milton, apenas em 1978. Chico e Milton são parceiros em “O cio da terra” e “Primeiro de maio”, lançadas em um compacto naquele 1977.
 
O cineasta moçambicano Ruy Guerra viu sua “Cadê”, parceria com Milton , ser proibida pela censora Marina de Almeida Brum Duarte e, no mesmo 1973, a peça “Calabar: o elogio da traição”, dele e Chico Buarque, ir pelo mesmo caminho e ter sua encenação cancelada pelo regime.




 
“Os censores liam as propostas e canções já com preconceito, e censuravam tudo o que não compreendiam”, observa Ruy Guerra em entrevista por telefone ao Estado de Minas. “Milton nunca foi de falar muito, nem de dar declarações políticas. É um cara de frases curtas, não verborrágico como eu. Mesmo assim, foi censurado”, nota o diretor.
 
Desde o último domingo (4/6), o EM relembra a censura prévia ao disco “Milagre dos peixes”, que teve as letras de três composições vetadas pelo regime militar: “Hoje é dia de El-Rey”, de Milton com Márcio Borges; “Os escravos de Jó”, com Fernando Brant; e “Cadê”, com Ruy Guerra. O jornal teve acesso aos documentos em que a censora Marina de Almeida Brum Duarte escreveu, à mão, o veredito sobre o conteúdo das composições de Milton e seus parceiros. Eles foram localizados no acervo digital do Arquivo Nacional e são pouco conhecidos.
 
Na visão da oficial, “Hoje é dia de El-Rey” apresentava “conteúdo nitidamente político”. “Os escravos de Jó” contém “sátira”, “protesto”, “contestação política” e até “pornografia”. Já a letra de “Cadê”, segundo Brum Duarte, trazia “ironia política” e “contestação”.




 
Para o historiador Bruno Viveiros Martins, autor do livro “Som Imaginário: a reinvenção da cidade nas canções do Clube da Esquina” (Editora UFMG, 2009), Milton pagou caro por ter lançado “Milagre dos peixes”.
“A resposta dada por ele à censura era algo inédito no Brasil”, analisa o pesquisador. “Milton teve a vida pessoal devassada”. O amigo e parceiro Márcio Borges concorda: “Bituca sofreu muita perseguição, tinha que comparecer naqueles locais horrorosos, prestar depoimentos.” 

SNI

O Serviço Nacional de Informações (SNI) foi criado em 1964 pelo governo militar para centralizar na Presidência da República o controle de informações consideradas fundamentais para a segurança nacional. Artistas, sindicalistas, líderes religiosos, políticos, estudantes, professores, cientistas, intelectuais, servidores públicos, empresários e cidadãos comuns eram vigiados secretamente sob suspeita de envolvimento em atividades contrárias à ditadura militar e apoio à esquerda. Faziam parte dos métodos de espionagem do SNI grampos telefônicos, censura à correspondência, monitoramento e fotografia de cidadãos. 

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