“A massa, meu caro, há de chegar ao biscoito fino que eu fabrico.” Publicada em uma carta de Oswald de Andrade, na única edição da revista modernista “Ritmo” (1935), a frase trouxe à tona a expressão que, quase um século depois, continua em uso – e com o mesmo significado, de algo especial.
Biscoito Fino se tornou nome da gravadora fundada há pouco mais de 20 anos e que hoje concentra grandes nomes da música brasileira – Chico Buarque, Maria Bethânia e Gal Costa (1945-2022), entre eles. Pois a expressão também dá título a um projeto especial da gravadora, que faz referência ao próprio Oswald para falar do modernismo e da Semana de Arte de 1922.
Recém-lançado, o álbum “Biscoito fino” é uma compilação que busca traduzir, para os dias de hoje, um século de música brasileira. “Foi um pouco de pretensão nossa, a música brasileira é muito grande para poder caber em 14 faixas. Mas a gente tentou realmente fazer um retrato do Brasil. E ele tinha que ser heterogêneo”, afirma a produtora Ana Basbaum, que assina a direção artística do projeto.
Ao lado do jornalista Renato Vieira, ela ficou responsável pela seleção do repertório e a escolha dos intérpretes. A direção musical é assinada pelo instrumentista e produtor Guilherme Kastrup. Como a tônica do álbum é a Semana de 22, ele deveria ter sido lançado no ano passado. Mas o grande número de intérpretes e instrumentistas (e suas respectivas agendas) atrasaram o lançamento.
O elenco procura misturar gerações. O disco marca a última gravação em estúdio de Gal, aqui dividindo, em tom mais grave, “Para Lennon e McCartney” (Márcio e Lô Borges e Fernando Brant) com a mineira Marina Sena. Do Clube da Esquina se chega ao “maldito” Sérgio Sampaio – Maria Bethânia gravou com Chico Chico “Em nome de Deus” – a dupla cantou acompanhada do piano de Maíra Freitas.
Há poucas semanas, vale dizer, o filho de Cássia Eller (1962-2001) subiu ao palco no Rio de Janeiro para dividir com Bethânia a canção. Arnaldo Antunes e Luedji Luna interpretaram “Sentado à beira do caminho”, de Roberto e Erasmo, como representantes da Jovem Guarda. João Gilberto, por meio de “Bim bom/Hô-Bá-Lá-Lá”, é relido por Jorge Mautner, Lucas Nunes e Dora Morelenbaum.
“Foi uma gincana daquelas difíceis de fazer, pois obedeceu a diversos elementos. Toda a criação partiu das ideias iniciais dos artistas e só daí começamos os arranjos. E cada música teve uma banda independente”, comenta Kastrup. As gravações foram realizadas nos estúdios Biscoito Fino, no Rio de Janeiro, e Toca do Tatu, em São Paulo.
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A ideia sempre foi a de abranger o maior número de movimentos e momentos da produção musical. Tanto que a música mais antiga é de Villa-Lobos (1887-1959), o único compositor que participou da Semana de Arte Moderna.
“Dança”, movimento das “Bachianas brasileiras nº4” (1930-1941) integra a única faixa instrumental do álbum. Defendida pelo Duo Gisbranco (as pianistas Bianca Gismonti e Claudia Castelo Branco) com o próprio Kastrup, o medley reúne ainda a música de Moacir Santos (“Coisa nº 5”) e Letieres Leite (“Honra ao rei”).
Uma das canções mais recentes é “Sem samba não dá”, do álbum de Caetano Veloso “Meu coco” (2021). O registro, um dos mais felizes encontros do álbum, foi feito por Jards Macalé e Criolo. Ana explica a escolha de uma obra da produção contemporânea do cantor e compositor baiano. “Dos compositores que estão com seus 80, ele é um dos mais ativos. Por isso pegamos uma música dele de agora, mesmo que ele tenha tantas canções fortes no repertório.”
O conterrâneo Gilberto Gil é autor da faixa que abre o disco. Representando o Tropicalismo, “Geleia geral” (com Torquato Neto) é defendida por quatro cantoras: Assucena, Liniker, Letrux e Josyara. A canção de protesto pertence a Chico Buarque, com “Deus lhe pague”, aqui interpretada por Metá Metá, Bia Ferreira e Brisa Flow.
“’Deus lhe pague’ tem um discurso atual, tão forte quanto em sua época, e as pessoas que selecionamos para cantá-la trazem novidade para a canção”, comenta Ana, fazendo a mesma relação com “Aquarela brasileira”, samba-enredo de Silas de Oliveira defendido pelo Império Serrano no carnaval de 1964.
“A Leci (Brandão) canta essa música hoje de forma melancólica, não festiva como no passado. Ou seja, ela passeia por um Brasil que ainda continua cuidando de suas mazelas”, acrescenta a produtora.
A dor amorosa, tema universal e onipresente na MPB ao longo de sua história, uniu Dolores Duran (1930-1959) e Marília Mendonça (1995-2021), ambas compositoras mortas precocemente e que, cada qual em sua época, falaram da mesma coisa. Zélia Duncan defende “Fim de caso”, de Dolores; e Letícia Soares, “Eu sei de cor”, do repertório de Marília. À exceção das percussões de Kastrup, toda a banda que gravou as duas canções, agora numa faixa só, é formada por mulheres – aí incluídas Josyara ao violão e Wanessa Dourado nos violinos e bandolim.
Nem todas as parcerias puderam ser registradas juntas em estúdio. E nem todos os nomes selecionados puderam participar. “A gente ia gravar com o Chico Buarque e o Chico Brown, avô e neto, mas não deu por causa de agenda. Quando esse encontro caiu, outro surgiu. O Arnaldo e a Luedji não estavam programados no início”, revela Ana.
Como foi difícil unir os nomes, não havia tempo para ensaio. Um dos encontros mais bonitos em estúdio foi complicado de acontecer. “Foi difícil, mas conseguimos um horário com o Criolo e o Jards Macalé no Rio. E tínhamos pouco tempo para resolver musicalmente a faixa, tanto que o arranjo de ‘Sem samba não dá’ foi feito no dia da gravação”, conta Kastrup.
FAIXA A FAIXA
Confira as músicas do disco e os artistas que as interpretam
1 – “Geleia geral” (Gilberto Gil/Torquato Neto) – Assucena, Liniker, Letrux e Josyara
2 – “Bim bom/Hô-Bá-Lá-Lá” (João Gilberto) – Lucas Nunes, Dora Morelenbaum e Jorge Mautner
3 – “Sem samba não dá” (Caetano Veloso) – Jards Macalé e Criolo
4 – “Aquarela brasileira” (Silas de Oliveira) – Leci Brandão, Edgar, Rodrigo Campos e Jonathan Ferr.
Música incidental: “Um pedaço de amor” (MC Edgar)
5 – “Deus lhe pague” (Chico Buarque) – Metá Metá, Bia Ferreira e Brisa Flow
6 – “Para Lennon e McCartney” (Lô Borges/Marcio Borges/Fernando Brant) – Gal Costa e Marina Sena
7 – “Sargaço mar” (Dorival Caymmi) – Arrigo Barnabé e Negro Leo
8 – “Água e vinho” (Egberto Gismonti/Geraldo Carneiro) – Bianca Gismonti
9 – “Coisa nº 5” (Moacir Santos)/“Honra ao rei” (Letieres Leite)/“Dança” (“Bachianas brasileiras nº4”)
(Heitor Villa-Lobos) – Duo Gisbranco e Kastrup
10 – “Em nome de Deus” (Sérgio Sampaio) – Maria Bethânia e Chico Chico
11 – “Fim de caso” (Dolores Duran)/“Eu sei de cor” (Danillo Davilla/ Elcio di Carvalho/ Lari Ferreira/ Junior Pepato) – Zélia Duncan e Letícia Soares
12 – “Sentado à beira do caminho” (Roberto e Erasmo Carlos) – Luedji Luna e Arnaldo Antunes
13 – “A vida do viajante” (Luiz Gonzaga e Hervé Cordovil) – Luiz Caldas e Illy
14 – “Fico louco” (Itamar Assumpção) – Lenine e Anelis Assumpção
“BISCOITO FINO”
Álbum com vários intérpretes
Biscoito Fino (14 faixas)
Disponível nas plataformas digitais