Rafael Gallo leva a mão à cabeça e encara a câmera

Rafael Gallo leva a mão à cabeça e encara a câmera

Wilian Olivato/Divulgação

Rafael Gallo foi o último a enviar o PDF de um manuscrito inédito para a organização do Prêmio José Saramago. Era um sonho do autor ganhar o prêmio. Ele havia tentado com o romance “Rebentar”, em 2017.

Tinha 35 anos, idade limite para concorrer. Não ganhou e achou que nunca mais teria a chance quando a Fundação José Saramago, que organiza o prêmio, lançou a categoria romance inédito e idade máxima de 40 anos, exatamente a de Gallo naquele 2022. Tudo ocorreu no limite, inclusive a comunicação do resultado. Como não reconheceu o número, o autor dispensou a ligação da fundação com o anúncio de que era vencedor. Felizmente, minutos depois teve um estalo e retornou.
O romance “Dor fantasma”, que encantou o júri do Prêmio José Saramago, conta a história de Rômulo Castelo, um pianista tão brilhante quanto arrogante, cujo sonho é tocar uma peça do compositor Franz Liszt nunca antes gravada devido à complexidade da partitura.

A estreia se daria em uma série de concertos a serem realizados na Europa e é para isso que ele trabalha incessantemente. Professor de uma universidade, casado mas incapaz de qualquer amorosidade, pai de um filho que despreza por ser deficiente, Rômulo Castelo vai sofrer um acidente que poderia ajudá-lo a atingir a redenção, mas na lapidação desse personagem e na construção dessa narrativa não há espaço para salvação.
 
Seria um caminho fácil, mas Gallo prefere explorar outras searas, aquelas mesmas cavucadas por gente como Fiódor Dostoiévski, que gosta de se embrenhar na maldade humana, nos extremos da alma, e nunca na média, no meio termo. "Uma coisa que minhas histórias têm é isso: a gente vai até o final, não vai mudar, não vai ter refresco", explica o autor, que não é grande leitor do russo, mas tem como referências o cinema de Ingmar Bergman e Michael Haneke.
 
"Minha literatura vem muito desses caras, que provavelmente beberam em Dostoiévski", diz. É difícil não se deixar levar pela personalidade tirânica do personagem, mesmo depois de atingido por uma fatalidade que vai roubar bem mais do que sua identidade.

Também causa um certo fascínio a maneira como o narrador discorre sobre detalhes técnicos do aprendizado e da execução do piano, assim como a obsessão compreensível que arrebata a maioria dos pianistas.Criado pelo pai, sob a rigidez da disciplina e a dureza do afeto raro, Rômulo Castelo é também um veículo para Gallo falar de algumas angústias. A masculinidade tóxica é uma delas, a saúde mental, outra.

"Eu, como homem e na convivência com outros homens, sinto muito essa carência desse desenvolvimento afetivo", conta o autor, que também revela sofrer com a bipolaridade. O universo da música era familiar ao escritor, que fez faculdade, se formou em violão e trabalhou algum tempo na área. "Hoje, é só um hobby", revela.
 
Quem é Rômulo Castelo?

Ele é um encontro de certos temas sobre os quais eu estava pensando. E é meio curioso pensar nisso hoje porque comecei a escrever esse livro em 2016 e acho que não consigo voltar a ter o mesmo olhar que eu tinha em 2016.

Mas, em primeiro lugar, eu tinha essa figura desse artista que deixa de ser um artista e, mais do que a perda de um ofício, é a perda da identidade, a perda do próprio eu. Mas também tinha um outro tema, que acho que entrou um pouco antes dessa questão do mal ou da tirania, que é a questão da masculinidade, do lado masculino e do pai como na nossa cultura machista e patriarcal.

Me interessava esse tema específico da não vinculação afetiva em que tudo vem muito pelo lado do desempenho, de esperar dos homens que eles trabalhem, sejam provedores, se destaquem, tenham liderança, consigam submeter os outros. Essa foi a gênese do Rômulo e ele foi puxando por esse lado da tirania, num lugar onde só isso importa.

Me interessam muito esses personagens em que se subtrai algo que os define ou que os deixa na situação de "quem eu sou?" É quase um desafio de vamos ver do que você é feito ao tirar a base de sustentação. No caso do Rômulo, quando você tira isso dele, ele vira essa figura que revela algo que sempre esteve ali.

A masculinidade tóxica também é uma temática para você. Por quê?

A Inês Pedrosa usa um termo que adoro: analfabetismo afetivo dos homens. Não há muito diálogo e, quando há, é cerceado, você não aprende, não desenvolve sequer um vocabulário para lidar com as próprias emoções.

Vejo muito isso em homens que estão ali com um mal-estar e não sabem o que é, não exploram isso, não sabem mesmo, e muitas vezes vão para a chave da agressividade quase como um animal não humano que, em situação de medo, não sabe compreender o que está acontecendo.

Por falta de entendimento e léxico, por falta de vocabulário das coisas. Acho que os homens vivem muito disso. Era um assunto que queria abordar, o que vem antes desse resultado desastroso que a gente tem, na maioria das vezes, com os homens. De onde vem? Como passa de pai para filho? O que fica faltando para que se chegue a esse resultado que é muito ruim, inclusive para os homens.

Claro, são privilegiados, mas é um sistema machista patriarcal, que não é bom para ninguém, que gera sofrimento. Isso para mim era um assunto: homens não conversam entre si, reprimem as emoções, não choram. Na minha leitura, não é uma falha, cada vez mais acredito que é um projeto porque, para o sistema, interessa que o homem não tenha vinculações afetivas, que se o patrão falar "vai trabalhar seis meses em outro país" ele vá e gere riqueza.

Um modus operandi do capitalismo?

Acho que sim. Acho que tende para esse lado porque realmente é interessante ter uma figura que só produz, em grande parte, como no sistema capitalista. Isso produz mais proveito para os patrões do que para nós mesmos. Acho que existe esse aspecto também.
 
Por que escolheu Liszt como o compositor fetiche do personagem?

Eu estava naquele momento da criação da história em que você, como se estivesse num nevoeiro, vai tentando encontrar certos elementos para dar cor para a história. E lembrei dessa história do “Rondeau fantastique”, de ele ser intocável.

Porque seria isso: Liszt, um virtuose do piano e uma composição que só ele teria tocado em vida e, depois que morreu, ninguém poderia mais tocar. Isso aumenta o valor da importância dessa estreia de Rômulo. E se alguém toca Liszt, alto grau de eficiência tem. Então combinava. Comecei a gostar desse lado obsessivo do Rômulo.

Ele toca outros compositores, mas ele tem Liszt no centro afetivo e isso se liga com a história do pai. Começou a formar uma espécie de mitologia pessoal dele.

A saúde mental também é um tema do romance, já que o protagonista entra em uma espiral de depressão que nem ele percebe. Isso foi intencional?

Foi bastante intencional. Eu lido com depressão. Até hoje não sei que verbo usar: se tenho depressão, se sofro de depressão. No momento estou bem, mas tive episódios. O “Dor fantasma”, eu começo a escrever quando tenho o primeiro episódio de uma série de depressões.

Em parte, o livro fala disso, da perda do eu. Ele nasce disso e, ao longo dos anos, atravessou meu segundo episódio, inclusive desencadeado por ter terminado de escrever a primeira versão e não ter dado certo. Então tem a depressão nas duas pontas, no começo e no fim.

Isso acabou entrando. O Rômulo não fala, não assume, não diz, mas a Lorena (uma amiga) sinaliza que, muito provavelmente, ele tem depressão. O livro está lidando com isso o tempo todo. Inclusive, o próximo romance lida com saúde mental, diretamente, frontalmente.

A literatura é um bom lugar para se representar e para se falar em depressão?

A literatura é o lugar onde você pode falar sobre as coisas e, através da fabulação da liberdade criativa, da ficção, é quase como se tivesse um simulador de vida. Posso simular uma vida que não vivo e conhecê-la um pouco melhor.

Ter um lampejo maior disso que talvez um texto jornalístico ou científico não possa dar. Um texto médico pode falar da questão fisiológica, mas não pode inferir como a pessoa se sente, fazer metáforas, o que, muitas vezes, é melhor.

Isso ajuda a compreender essas diferenças, essa multiplicidade de vidas. Se alguém nunca lidou com isso, pode ler e pensar "como é isso de depressão?". Com personagens, alguém pode entender muito melhor do que uma explicação de bula. Não que vá mudar o mundo, mas faz com que a gente se conheça melhor.