Passados 10 anos das Jornadas de Junho de 2013, resta como ponto pacífico o fato de que foi um movimento multifacetado, difuso, que englobava diversos anseios e insatisfações. Múltiplos também são os olhares lançados sobre aquele momento histórico desde então. Diversos livros e filmes foram produzidos com o intuito de tentar registrar ou entender a dimensão daquele acontecimento.





Tais obras elegem focos distintos – algumas tratam das causas, outras dos episódios em si e outras, ainda, dos desdobramentos. Quatro livros sobre o assunto vieram à luz este ano: “Uma crise chamada Brasil: a quebra da Nova República e a erupção da extrema direita”, de Conrado Corsalette, “A razão dos centavos: crise urbana, vida democrática e as revoltas de 2013”, de Roberto Andrés, “A verdade vos libertará”, de Gabriela Biló, e “Treze – A política de rua de Lula a Dilma”, de Angela Alonso.

Neste último título, a professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento mira os protestos que explodiram há uma década como uma consequência, e analisa as causas que levaram à sua eclosão.

Angela também jogou luz sobre as Jornadas de Junho de 2013 na seara do audiovisual, com a série documental “Junho 2013: O começo do avesso” e o documentário “Ecos de junho”, ambos realizados a quatro mãos com o jornalista Paulo Markun e lançados no ano passado.




 

Brasília em ebulição no filme 'Junho - O mês que não terminou'

(foto: Mostra de SP/divulgação)
 

Celeiro de divergências

Estudando o tema sistematicamente desde que ele se impôs na agenda política brasileira, ela observa que muito se escreveu e falou sobre os acontecimentos de junho de 2013, com interpretações entusiastas ou apocalípticas, que viram no ciclo de protestos que sacudiu o país o despertar de uma esquerda renovada ou a nascente da direita mais retrógrada.

“As divergências são muitas. A mais importante é em torno do sentido inicial dos protestos. Muita gente ainda acha que foi um movimento de esquerda capturado pela direita. Mas nunca foi só a esquerda na rua, foi um ciclo de protesto, não um único movimento, e neste ciclo se manifestou toda a complexidade que vinha de antes: movimentos do campo autonomista, do neossocialista, do patriota. Todos contra o governo do PT, cada qual por sua razão”, aponta.

Roteirista e diretor, ao lado de Raul Mourão, do documentário “O mês que não terminou”, lançado em 2019, o filósofo e ensaísta Francisco Bosco também enxerga mais imprecisões do que clarezas nas manifestações que ocorreram de Norte a Sul do país, levando mais de 1 milhão de pessoas às ruas.





Ele aponta que as Jornadas de Junho são um fenômeno mais complexo e indeterminado do que todos os outros marcos seguintes, de natureza ideológica mais clara: a Lava-Jato, o impeachment de Dilma Rousseff, a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro.

“Tenho a impressão de que Junho, propriamente, não é muito reivindicado pela direita. Junho é, essencialmente, um significante do campo da esquerda, assim como a Lava-Jato o é da direita. Mas quem reivindica Junho pela esquerda é uma corrente não-petista, mais contemporânea, ligada aos movimentos autonomistas e a outras matrizes teóricas, como Negri e Hardt. Os petistas, então governistas, tendem a ver uma relação direta entre Junho e, no limite, Bolsonaro. Há essas divisões fundamentais”, observa.
 
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Considerando que o espírito original era de esquerda, ele pontua que muito rapidamente o direcionamento ideológico das manifestações mudou, em razão de seu caráter espontâneo, destituído de hierarquias, e da constante pressão de setores sociais conservadores.





“Foi uma irrupção que se deu num contexto de cidadania impotente, em uma democracia liberal mais liberal do que democrática. Nesse sentido, foi atravessada pelo mesmo espírito de eventos internacionais, como os Indignados, em Madri, ou o Occupy Wall Street. Mas esse caráter de esquerda se dissolveu à medida em que outros grupos vieram às ruas. A coisa ficou difusa e heterogênea. Em seguida, prevaleceu um caráter mais de direita, ligado ao tema da corrupção”, destaca.

Se por ocasião dos 10 anos das Jornadas de Junho de 2013 muitas obras sobre o tema têm vindo à luz, cabe observar que, durante todo esse período, as manifestações, suas causas e efeitos estiveram na pauta do dia. Lançada apenas seis meses após as passeatas, a antologia “Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram o Brasil”, de 2013, que reúne textos de especialistas de diferentes campos, foi a primeira publicação relevante sobre os episódios daquele ano.

Olhar paulistano

Em 2014, foi lançado o documentário “Junho – O mês que abalou o Brasil”, de João Wainer, com imagens dos protestos, relatos dos participantes e vítimas das agressões policiais e análises de especialistas e figuras do debate público brasileiro. É um filme importante para se ter uma visão imediata do ocorrido, a despeito de suas análises serem muito focadas nas experiência paulistana.




 

 

Lançado em 2015, o livro “Brasil em movimento”, organizado por Maria Borga, Natasha Felizi e João Paulo Reyes, traz uma série de reflexões feitas no calor dos acontecimentos por pessoas de diversas áreas. O arquiteto Paulo Mendes da Rocha, o economista Gustavo Franco, o cantor e compositor Gilberto Gil, o líder ianomâmi Davi Kopenawa, o geógrafo Jaílson de Souza e Silva e o historiador Daniel Aarão Reis estão entre os nomes que assinam os textos.

Com o momento histórico já mais decantado, vários livros de análises vieram à luz entre 2018 e 2020. Figuram nesse rol “Jornadas de Junho: 5 anos depois” (2018), de Tiana Maciel Wllwanger; “Amanhã vai ser maior” (2019), de Rosana Pinheiro-Machado; “Jornadas de Junho de 2013 e a representação política: três sentidos possíveis” (2020), de Bruno Morais; “As direitas nas redes e nas ruas” (2019), com oito artigos escritos por diferentes estudiosos; e “Os dias da crise”, de Jerônimo Teixeira.

Este último é um dos poucos livros a abordar o assunto no terreno da ficção. O romance do jornalista e escritor gaúcho conta a história de um executivo paulistano que vive as manifestações a partir de sua relação com duas mulheres: Helena, por quem se apaixona, e a filha, militante de esquerda. Teixeira diz que não esteve nas ruas em 2013 e que não pretendeu, com “Os dias da crise”, fazer um relato factualmente fiel das passeatas.





“Quero crer que o livro conversa com uma realidade que não está imediatamente relacionada às Jornadas de Junho, mas que constitui seu caldo de cultura, com a indigência e a intransigência do debate público brasileiro”, aponta. Ele destaca que a obra expressa mais sua incompreensão e seu pasmo diante do que aconteceu do que propriamente uma “visão” sobre as Jornadas de Junho de 2013.
 

Jerônimo Teixeira transformou as Jornadas de Junho em cenário do romance 'Os dias da crise'

(foto: Paulo Vitale/divulgação)
 

O autor diz ter lido pouco a produção acadêmica sobre o tema, mas lhe coube a missão de resenhar duas obras que se, por um lado não tratam especificamente sobre as manifestações, por outro oferecem uma visão interessante sobre duas correntes que atravessam aquele momento histórico. Uma delas é “Eles em nós” (2021), de Idelber Avelar, e a outra é “O ovo da serpente”, de Consuelo Dieguez.

“Há uma esquerda não alinhada ao PT que vê nos protestos de 2013 uma eclosão popular não tutelada pelo partido então no poder, uma expressão de anseios populares que eram ou reprimidos pela direita ou domesticados pela esquerda institucionalizada. O livro do Idelber Avelar vai mais ou menos nessa linha”, diz, pontuando que obra derrapa ao fazer uma idealização das ruas e expressar uma atribuição forçada de sentidos ao movimento – sentidos que os fatos, sempre ambíguos, não sustentam nem negam, conforme observa.





“Para a esquerda mainstrem, 2013 é quase sinônimo de bolsonarismo. Nessa chave, as multidões que foram às ruas em junho destamparam a garrafa do gênio demoníaco – o populismo de direita, o extremismo, o fascismo. 'O ovo da serpente', que faz uma reconstituição abrangente e competente da gestação do bolsonarismo, vai por esse caminho. Creio que no fundo dessa leitura está a desorientação da esquerda petista ao constatar que a revolta popular pode emergir sem a tutela do partido”, avalia.

Ele diz ver as Jornadas de Junho de 2013 com melancolia. “Desconfio que alguma oportunidade se perdeu em junho de 2013, que as pessoas talvez tenham deixado as ruas cedo demais e que nossas instituições, sempre viciadas e retrógradas, não foram capazes de discernir o recado difuso que se deu ali.”

Falha custou caro

Por outro prisma, Angela Alonso também acredita que se perdeu ali uma oportunidade – no caso, de frear o avanço da extrema direita. A socióloga sustenta que o governo Dilma Rousseff e analistas políticos falharam em identificar os movimentos de direita nas ruas e reconhecê-los como atores políticos legítimos. Essa dificuldade impediu que esses grupos fossem levados à mesa de negociação e tivessem suas demandas ouvidas.





“Se esses movimentos tivessem sido ouvidos, teria havido a possibilidade de trazer os mais liberais ou conservadores democráticos para o jogo político-institucional de maneira mais efetiva, em vez de ficarem misturados aos movimentos autoritários, que eram minoria. Há ali uma chance perdida de isolar a parte autoritária da rua”, aponta.
 

Cena de 'Junho 2013 - O começo do avesso'

(foto: Canal Brasil/reprodução)
 

REVENDO AS RUAS


Confira obras lançadas sobre as Jornadas de Junho de 2013

LIVROS
>> '“Treze – A política de rua de Lula a Dilma” (Cia. das Letras, 2023), de Angela Alonso

>> “A razão dos centavos: crise urbana, vida democrática e as revoltas de 2013” (Zahar Editora, 2023), de Roberto Andrés

>> “Uma crise chamada Brasil: a quebra da Nova República e a erupção da extrema direita” (Fósforo Editora, 2023), de Conrado Corsalette

>> “A verdade vos libertará” (Fósforo Editora, 2023), de Gabriela Biló

>> “Jornadas de Junho de 2013 e a representação política: três sentidos possíveis” (Novas Edições Acadêmicas, 2020), de Bruno Morais

>> “Amanhã vai ser maior” (Planeta, 2019), de Rosana Pinheiro-Machado

>>  “Os dias da crise” (Companhia das Letras, 2019), de Jerônimo Teixeira

>> “As direitas nas redes e nas ruas: a crise política no Brasil” (Editora Expressão Popular, 2019), de Esther Solano e Camila Rocha (organizadoras)

>> “Jornadas de Junho: 5 anos depois” (Autografia, 2018), de Tiana Maciel Ellwanger

>> “Brasil em movimento” (Rocco, 2015), de Maria Borba, Natasha Felizi e João Paulo Reyes (organizadores)

>> “Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram o Brasil” (Boitempo, 2013), vários autores

FILMES

>> “Ecos de Junho” (2022), de Angela Alonso e Paulo Markun

>> “Junho 2013: o começo do avesso” (2022), de Angela Alonso e Paulo Markun

>>  “O mês que não terminou” (2019), de Francisco Bosco e Raul Mourão  

>> “Junho – o mês que abalou o Brasil” (2014), de João Wainer

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