Um dos melhores episódios da francesa “Dix pour cent” (2015-2020), série sobre agentes (ficcionais) de Paris que gerenciam a carreira de atores e diretores (que interpretam a si mesmos), gira em torno de Isabelle Huppert. Ela é a estrela de duas produções que estão sendo rodadas ao mesmo tempo. Para tal, quebrou o contrato de exclusividade com os produtores de um dos longas.
A atriz quase enlouquece a equipe de sua agência, que tem que se virar para que um cineasta não descubra sobre o outro – e vice-versa. É pura ficção, mas com uma base muito real – Huppert filma em quantidades colossais, como ninguém mais. E também como ninguém, viu a idade se aproximar e o prestígio e os convites para novos projetos só crescerem.
No último 16 de março, a atriz completou 70 anos. Com 50 de cinema, vem se aproximando dos 150 filmes. Qualquer um sabe fazer as contas: em média, três produções por ano. Neste momento, Huppert está em cartaz com dois filmes em Belo Horizonte.
Em “Uma vida sem ele”, destaque no UNA Cine Belas Artes, ela é a protagonista no filme do francês Laurent Larivière. No drama, Huppert interpreta Joan, uma editora recém-aposentada que, ao retornar para sua antiga casa de campo, começa a prestar contas ao passado por meio da memória fragmentada.
Em “EO”, do polonês Jerzy Skolimowski (em exibição no Belas Artes e no Centro Cultural Unimed-BH Minas) faz uma pequena participação. Já em 6 de julho estreia “O crime é meu”, de François Ozon, cineasta também prolífico como ela.
Huppert é reconhecida por interpretar personagens moralmente complexos – seu título mais conhecido é “Elle” (2016), de Paul Verhoeven, que lhe deu uma indicação ao Oscar de melhor atriz pelo papel de uma executiva que não só não denuncia um estupro como estabelece um jogo perverso com seu algoz.
Desde o início de sua carreira, no começo dos anos 1970, Huppert emergiu como uma força do cinema exatamente por causa de suas escolhas – estrelou dezenas de filmes que ganharam prêmios em Cannes, Berlim e Veneza.
Neste momento, está na Coreia do Sul, filmando com o cineasta Hong Sang-soo – é seu terceiro filme com o diretor considerado por muitos o Woody Allen coreano. Ela foi para o país asiático depois de terminar, em maio, uma temporada teatral parisiense de “Mary said what she said”, monólogo de Robert Wilson em que interpreta Mary Stuart, rainha da Escócia.
Nada a esmorece. É o que fica claro com a entrevista, concedida por Huppert ao Estado de Minas por telefone, passada a meia-noite (da Coreia). “Realmente amo o que faço, não é aquele fardo de ir toda manhã fazer algo de que não gosto. Claro que trabalho, mas não sinto que estou trabalhando.”
“Uma vida sem ele” é o segundo longa de ficção de Laurent Larivière. O que a fez aceitar fazer o filme?
Acho que o roteiro era realmente original. A estrutura do filme é especial, com todos os flashbacks que fazem com que somente no fim você encontre a chave da história. E o Laurent é um diretor muito interessante, eu tinha visto o filme dele anterior, “Eu, soldado” (2015) e gostado muito. São razões suficientes para ter feito o filme.
A quantidade e a diversidade de filmes que você já fez são sempre mencionadas quando se fala sobre a sua carreira. Quando vai se decidir sobre um projeto, o diretor vem sempre na frente do roteiro?
O diretor, sempre. E acho que continuarei mantendo assim. Houve raras ocasiões em que fiquei mais interessada no projeto pelo roteiro do que pelo diretor propriamente. E não trouxeram muito retorno para mim.
“Uma vida sem ele” fala de perda, amor e até de esperança. Estas coisas estão sempre conectadas?
Gostaria que sim. Se fosse o caso, o mundo seria melhor. É claro (que amor) é a solução para eventos insuportáveis que a vida nos proporciona, a morte de alguém por exemplo. Neste caso, haverá sempre esperança, e ela é também amor. Falando sobre a estrutura do filme, depois de tantos anos, Joan (a personagem de Huppert) literalmente reinventa suas memórias de uma forma que beira a insanidade. Você acaba tendo uma visão diferente daquela mulher, que estava lidando entre a sanidade e a insanidade. Se a história tivesse sido contada de forma linear, teria sido bem menos interessante. Porque a narrativa é tratada do jeito que a memória funciona, com as fantasias que todos temos. E é o amor que acaba a levando de volta para a realidade.
Na sequência inicial do filme, Joan fala olhando para a câmera que a nossa memória é feita das imagens que criamos. Na sua opinião, o passado é sempre mais interessante do que o tempo presente?
É um bom questionamento, mas não diria mais interessante. Não para mim. Acredito mais no momento presente, ainda mais porque sou uma atriz, e fazer cinema é exclusiva e precisamente sobre o momento. Por isso é fascinante. Quando você faz, aquilo se torna a coisa mais importante. Então acredito que o presente seja mais importante do que o passado. E quando se vive muito celebrando o passado, as memórias, você pode se tornar muito improdutivo.
Li uma entrevista em que Larivière disse que o filme é sobre como a ficção nos ajuda a lidar com a vida. Devolvo a pergunta a você: como a ficção, sendo a atriz que é, a ajuda a lidar com a vida real?
Tudo o que fazemos é uma ficção. Mas ela não está só nos filmes, mas também na música, na pintura, nos livros. É qualquer expressão que faça você viajar com sua cabeça. Isto é que é triste quando os países vão mal, quando não se tem possibilidade de levar ficção (para as pessoas). A vida, sem ela, se torna muito menos apreciável. O que podemos fazer se não lemos livros, vemos filmes? Ok, algumas pessoas não veem filmes, mas eu não sou uma delas. De qualquer forma, todos temos que encontrar nosso escape, é a ficção que nos faz ficar vivos.
O cinema de Belo Horizonte que está exibindo “Uma vida sem ele” também está apresentando “EO”, em que você fez uma pequena participação. Como você entrou para este projeto do Jerzy Skolimowski?
Somos amigos há muito tempo e por anos tentamos fazer um filme juntos, que não aconteceu. Seria um filme baseado em “Na América”, um dos poucos romances que a Susan Sontag escreveu. Como ele nunca vai acontecer, o Jerzy me chamou para esta participação. Fiz e amei o filme. Mas é claro que a estrela é o burro. Não posso competir com ele.
Três anos atrás, o jornal “The New York Times” fez um levantamento dos atores mais influentes do século 21. Você ficou em segundo lugar (Denzel Washington é o primeiro). O que esta lista representou para você?
Sou a número 1 como atriz. Depois da surpresa, porque realmente fui surpreendida, li os comentários no artigo que acompanhava cada menção. (A seleção) Obviamente tem muito a ver com as minhas escolhas e as pessoas com quem trabalho. Acho que a seleção foi igualmente para mim e para os diretores prestigiosos com quem trabalhei.
Você tem dois cinemas em Paris. O cinema, ao menos no Brasil, é a área de cultura que está mais sofrendo no pós-pandemia. O público voltou ao teatro, aos shows, mas não ao cinema. Na França acontece o mesmo, não?
Meu filho e o pai dele administram as salas. Na França isto também acontece, como em todo o mundo. Mas as coisas estão melhorando. Não ao ponto de como era antes (da pandemia), mas está melhorando. Alguns filmes foram muito bem-sucedidos, incluindo os meus.
Como atriz, você vem sentindo o impacto da crise do cinema e da explosão do streaming?
Isto realmente não me afeta. Não digo que seja fácil. O meio mais independente tem que ser agora mais cauteloso e vigilante. E a maioria dos filmes que faço são independentes. Mas não posso dizer que, pessoalmente, isto me afetou. Meu número de possibilidades, de ofertas de trabalho, não diminuiu. Permanece o mesmo. Mas sei que sou uma exceção.
No mês passado, você encerrou em Paris uma temporada do espetáculo “Mary said what she said”, dirigido por Robert Wilson. Vi que ainda fará algumas datas este ano. O que o teatro te proporciona que o cinema não? Falo de teatro porque em duas ocasiões você veio ao Brasil com espetáculos (“Quartett”, em 2009 e “4,48 Psychose”, em 2003).
Aliás, adoraria levar “Mary said” ao Brasil porque é extraordinário. Eu não deveria dizer isto porque é um monólogo, então sou eu em cena o tempo todo. Mas é muito especial, algo que gostaria de continuar fazendo quando puder. Originalmente, levaríamos a peça para Los Angeles e Nova York. Isto era antes da pandemia, mas quando ela veio, não teve como reprogramar. Estão discutindo para ver se conseguimos ir para os EUA. Gostaria de levar ao Brasil porque minhas experiências mais memoráveis daí vêm do teatro. Agora, teatro e cinema não é uma questão de mais ou menos, é diferente. Acho que a maneira como navego entre teatro e cinema realmente me preenche – e isto também por causa daqueles com quem trabalho.
“UMA VIDA SEM ELE”
Direção: Laurent Larivière. Com Isabelle Huppert, Lars Eidinger e Swann Arlaud. Joan (Isabelle Huppert) reencontra seu primeiro amor e isso a faz rever o passado, incluindo o fato de que não contou a ele que tiveram um filho juntos. Em cartaz no UNA Cine Belas Artes (Sala 1, 14h, 16h e 18h).
“EO”
Direção: Jerzy Skolimowski.Com Sandra Drzymalska, Mateusz Kosciukiewicz, Lorenzo Zurzolo e Isabelle Huppert. Eo, um burro cinza com olhos melancólicos, conhece pessoas boas e más quando deixa o circo e percorre o caminho da Polônia até a Itália. Em cartaz no UNA Cine Belas Artes (Sala 2, 18h40) e no Unimed-BH Minas Tênis Clube (15h).
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