O músico, jornalista e pesquisador gaúcho Arthur de Faria diz que costuma ser muito econômico com a palavra “gênio”, mas não se furta a usá-la repetidas vezes quando o assunto é o conterrâneo Lupicínio Rodrigues (1914-1974). É sobre a vida e a obra do autor dos clássicos “Nervos de aço”, “Felicidade”, “Vingança”  e “Se acaso você chegasse” que ele se debruça em “Lupicínio: uma biografia musical” (Arquipélago).





O livro é o desdobramento da tese de doutorado que Arthur defendeu no final do ano passado, fruto da pesquisa que desenvolve desde o início dos anos 1990 sobre a história da música de Porto Alegre. O mergulho em sua própria aldeia já rendeu os livros “Um século de música no Rio Grande do Sul” (2000), “Elis: uma biografia musical” (2015) e “Porto Alegre: uma biografia musical” (2022).

Os dois últimos títulos, bem como o que focaliza Lupicínio, são o desmembramento de cerca de 2 mil páginas que Arthur escreveu sobre personagens, cenários e tradições da música gaúcha. Em 2015, procurou uma editora para publicar o material e foi convencido a desdobrá-lo em mais de um livro.

“Eram umas 150 páginas sobre Lupicínio, o ponto de partida para a tese. Foi o caminho inverso: eu já tinha o assunto e uma área de interesse que acabei trazendo para o doutorado. Foi bom, porque deu rigor acadêmico à pesquisa”, diz, ressalvando que o rigor se aplica ao conteúdo, não à forma, pois o texto tem o tom coloquial de uma conversa.





“O legal é que na cadeira de literatura brasileira da Universidade Federal do Rio Grande Sul, a gente tem liberdade para escrever do jeito que quiser. Então, escrevi como jornalista, não precisei mudar nada da tese para o livro. Ela já foi escrita assim, com linguagem informal, mas com rigor acadêmico no que diz respeito à apuração”, pontua.
 

Nelson Cavaquinho e Lupicínio, o gaúcho que se destacou no samba vivendo longe do Rio de Janeiro e sem se enquadrar no estereótipo do sambista carioca

(foto: Coleção José Ramos Tinhorão/Acervo IMS)
 

Negro na região mais branca do Brasil

A escolha de Lupicínio se ampara em algumas singularidades. Esse personagem negro, de baixa classe média, nascido e criado no Rio Grande do Sul, a região mais branca do país, se tornou ícone da música brasileira,  a despeito da situação desfavorecida.

Outro ponto diz respeito à confusão proposital entre criador e criatura, pois o compositor afirmava que suas letras diziam estritamente a verdade, abordavam fatos que efetivamente ocorreram – mas não é bem assim, segundo Arthur. Porém, a razão principal de sua opção foi a genialidade de Lupicínio.





O livro entrelaça depoimentos de parceiros musicais, amigos e familiares, além de trazer farta pesquisa bibliográfica e análises cuidadosas sobre letras e melodias criadas por um homem que não estudou música e não sabia tocar instrumentos. Para compor e nas apresentações, Lupicínio Rodrigues contava, como parceira inseparável, apenas com uma caixinha de fósforos.

“Nas letras, Lupicínio tinha essa coisa de cavar fundo o que há de mais sórdido e indigno na 'cornitude'. Conseguia ir além de Aldir Blanc ou Chico Buarque. Isso quem diz é Augusto de Campos, é Caetano Veloso e é o próprio Aldir”, aponta Arthur. O biógrafo chama a atenção para a inventividade de Lupicínio ao começar uma história pelo meio, como em “Loucura”, que principia com a frase “E aí, eu comecei a cometer loucura”.

Quanto à parte melódica, Arthur de Faria observa que são muitos os compositores da primeira metade do século passado que não tinham estudo formal e não sabiam tocar instrumentos – caso de Adoniran Barbosa, Ismael Silva e Lamartine Babo. Porém, Lupicínio se eleva pela sofisticação. “Ele conseguiu voos melódicos que não têm páreo, mesmo entre caras que estudaram”, diz.




 

O músico, jornalista e pesquisador Arthur de Faria chama a atenção para a sofisticação das letras e melodias de Lupicínio

(foto: André Feltes/divulgação)
 

O pesquisador ressalta o instinto, o senso de adequação da letra à melodia – e vice-versa – do biografado. “É coisa de gênio mesmo. Pegando o grau máximo de sofisticação da MPB, Chico Buarque e Edu Lobo em 'Beatriz', eles fizeram juntos essa música que tem a nota mais aguda na palavra 'céu' e a mais grave na palavra 'chão'. Lupicínio tem esse tipo de sacada em várias canções, e tudo no instinto, na inteligência de compositor”, ressalta.
 
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Como não tocava instrumentos, Lupicínio também não tinha amarras, criava com mais liberdade, na opinião de Faria. As músicas do gaúcho não se prendiam ao esquema de estrofe/refrão. Muitas delas trazem soluções melódicas que levam para lugares cada vez mais distantes de onde começaram.

“É música que vai e não volta. Um paralelo bizarro, goste-se ou não, é a Legião Urbana. Lupicínio não vai para onde seria óbvio ir, vai para o outro lado. Alguns intérpretes de sua obra insistem em fórmulas estabelecidas e aí dá ruim. Há vários discos instrumentais sobre a obra de Lupicínio, o que não é comum. As músicas dele funcionam sem letra porque são muito ricas”, aponta.




Músico 'fora da curva' em Porto Alegre

Preto, pobre e vivendo em uma região de maioria branca, Lupicínio conseguiu se estabelecer como compositor de sucesso graças ao cenário de uma época favorável a ele, de acordo com Arthur. O gaúcho começou a compor samba-canção em 1932 e a se tornar mais conhecido em 1936. Até o início dos anos 1930, havia uma produção musical porto-alegrense muito particular. Com o Estado Novo, a partir de 1937, o samba carioca – principal inspiração de Lupicínio – se tornou sinônimo de música popular brasileira.

“Ser preto valorizou Lupicínio naquele momento, deu a ele um lugar de fala, para utilizar a expressão atual. De certa forma, Lupicínio foi um ponto de corte meio radical na música de Porto Alegre. Rompeu com o que vinha sendo feito e fez um negócio que se vinculava ao samba carioca. Aí todo mundo começou a querer compor como Lupicínio, só que sem o mesmo talento. Ele foi a sombra não proposital, meio inibidora, para os outros artistas locais entre os anos 1930 e 1950”, diz Faria.
 
 

Lupicínio foi o único dos grandes compositores da primeira metade do século 20 que não morava no Rio de Janeiro. Ainda assim, alcançou consagração nacional. “Nos anos 1950, ele era um dos três maiores autores brasileiros, ao lado de Ary Barroso e Dorival Caymmi. A montanha teve de ir a Maomé: de repente, estava todo mundo em Porto Alegre para pegar músicas com Lupicínio”, ressalta.





Em termos de criação, o gaúcho estava imerso no universo do samba carioca, mas, a despeito de ser notório boêmio, destoava do imaginário do sambista clássico dos anos 1930/1940. “Ele não morava no Rio de Janeiro, não era malandro, não era do morro. Tinha carteira assinada, era pai devotado, não se metia em confusão. Zuza Homem de Melo diz que Lupicínio foi o maior mestre do samba-canção, mas fora dos clichês associados aos compositores do gênero”, diz.
 
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Arthur de Faria revela que uma das maiores dificuldades para escrever “Lupicínio: uma biografia musical” foi separar a lenda da realidade – ou seja, o compositor de carne e osso do personagem sofrido das canções, sempre às voltas com desventuras amorosas.

“Cada vez que Lupicínio contava sua história, contava de um jeito diferente. Ele dizia que tudo o que escrevia era verdade. Companheiros de geração que escreveram sobre ele se deixam levar por essa mitologia. Desminto muitas lendas no livro”, avisa o jornalista e pesquisador.





O biógrafo observa que Lupicínio fantasiava muito, mas sem se descolar completamente da realidade. “Como todo grande ficcionista, ele partia de sua experiência pessoal e a expandia. Falava que tudo tinha acontecido mesmo. Em alguma medida, isso é verdade, mas também tem histórias inventadas a partir de um mote. 'Se acaso você chegasse' trata de um fato: ele não sabia como dizer que estava 'pegando' a mulher pela qual o amigo estava apaixonado e fez um samba”, conta.
 
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Limbo e reabilitação

A biografia registra o momento, a partir do fim da década de 1950, em que Lupicínio e contemporâneos ficaram “meio esquecidos”, por causa da Bossa Nova, da Jovem Guarda, da Tropicália, da MPB de protesto e dos festivais promovidos pela TV. O livro também trata da reabilitação, na década de 1970, daquela geração da era de ouro do rádio.

“Augusto de Campos só falava de Lupicínio, dizia que era um gênio do nível de Shakespeare ou de Nelson Rodrigues, isso no auge da Tropicália. Lupicínio morreu com 59 anos, em 1974, e não se viu reabilitado. A última notícia que ele teve foi de que Caetano tinha lançado um disco cantando 'Felicidade'. João Gilberto, o farol da sofisticação, cantou muito Lupicínio. Então, ele morreu dizendo: 'Finalmente estão reconhecendo o velhinho'. Foi a última geração em que um cara de 59 anos era velhinho”, afirma Arthur de Faria.

(foto: Arquipélago/reprodução)
“LUPICÍNIO: UMA BIOGRAFIA MUSICAL”

. De Arthur de Faria
. Arquipélago Editorial
. 376 páginas
. R$ 79,90
 

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