Como comprova a grande quantidade de autobiografias e autoficções produzidas nos últimos anos, o “eu” ocupa cada vez mais o centro das narrativas. É sobre a escrita de si mesmo que a professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Sabrina Sedlmayer vai falar no bate-papo “Os escritos de si”, nesta quarta-feira (21/6), na Academia Mineira de Letras (AML).
“Quando falamos da escrita de si, que é o gênero do qual fazem parte biografia, autobiografia, testemunhos, cartas e, para alguns especialistas, também a entrevista, estamos falando de uma espécie de transmissão da experiência psicanalítica. É como se fosse uma sessão de terapia na qual o indivíduo se abre, fala de si mesmo”, explica a professora.
Para abordar o tema, é conveniente se debruçar sobre a filosofia.“As ‘Confissões’, de Santo Agostinho, contribuíram muito no Ocidente para o uso do ‘eu’ como objeto”, observa a professora. “Mas é com ‘As Confissões de Jean-Jacques Rousseau’, escrita pelo iluminista, que esse modo de escrever vira gênero”, acrescenta.
Autores em primeira pessoa
Lançada em 1782, a autobiografia de Rousseau assume um caráter psicanalítico. Conforme escreveu o próprio iluminista, “o verdadeiro objetivo das minhas ‘Confissões’ é fazer conhecer exatamente o meu íntimo”.Outros exemplos estão nas obras de Montaigne e Descartes. No início do século 16, o criador dos ensaios pessoais propôs a investigação da condição humana por meio do ‘eu’. “É a mim mesmo que pinto”, escreveu Montaigne, na apresentação de seus “Ensaios”.
Descartes, por sua vez, concluiu que o “eu” é resultado da negação do mundo exterior e interior. Ou seja, é inconsciente de si. E, a partir desse “eu”, propôs perscrutar a humanidade. Descartes, contudo, mudou a forma de escrever sobre si, de acordo com Sabrina.
“Com Montaigne, a gente já vê essa busca do ‘eu’ como interioridade. Mas foi Descartes quem mudou essa estratégia de busca do ‘eu’”, observa, ressaltando que, com o pai do plano cartesiano, a dúvida deixou de ser “quem sou?” e passou a ser “o que sou?”, dando nova dimensão na busca pelo “eu”.
Novas formas descrever sobre si mesmo foram surgindo e sendo exploradas ao longo dos anos, até desembocar na autoficção, termo cunhado em 1977 pelo escritor francês Serge Doubrovsky para definir seu livro “Fils”.
De acordo com o autor, o romance fazia parte de um novo estilo, que embaralha autobiografia e ficção. E, além de acrescentar histórias inverossímeis à biografia, deveria contar com espaços em branco no intuito de deformar os fatos e interromper a narrativa.
Parece paradoxal. E é, conforme explica Sabrina. Afinal, trata-se de dois gêneros que se contradizem e deveriam se neutralizar. “A autoficção é um neologismo criado por Doubrovsky para falar sobre ele. Quando ele diz que o livro dele (“Fils”) é de autoficção, é, na verdade, um romance com um narrador real”, afirma.
Sobre o contexto atual, a professora comenta: “Com as redes sociais, os escritores hoje vivem uma época de extrema exposição. O nome deles foi mercantilizado e são poucos os que seguem na contramão do mercado. Assim, a grande quantidade de produções de autores sobre si mesmos é uma consequência dessa hiperexposição”.
“Nós estamos seguindo em direção a uma outra conjuntura. A referencialidade era de um jeito com Rousseau. Agora, com a inteligência artificial, é completamente diferente. Isso vai mudar a forma de fazer literatura. Contudo, pode ser apenas um sonho meu, mas acredito que, a partir disso (inteligência artificial), só vai fazer literatura quem tem, de fato, algo para dizer”, conclui.
OS ESCRITOS DE SI
Palestra com Sabrina Sedlmayer. Nesta quarta-feira (21/6), às 20h, na Academia Mineira de Letras (Rua da Bahia, 1.466, Lourdes). Entrada franca. Informações: (31) 3222-5764.
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