Jacob, vivido por Gijs Naber, esbelto capitão de um navio cargueiro resolve deixar de ser o solitário que é para se casar com a primeira moça que encontrar. E a primeira é a bela e atrevida Lizzy, papel de Léa Seydoux, que para surpresa de Jacob topa se casar com ele.
Logo no primeiro encontro ele lhe propõe um jogo de pôquer safado – quem perde uma mão tem de tirar uma peça de roupa. Quando o rapaz começa a explicar os princípios do jogo, Lizzy logo avisa que já o conhece, informação de que Jacob desdenha. Na cena seguinte o que vemos é Lizzy vestida da cabeça aos pés e Jacob nu em pelo.
A situação bem podia bem servir de alerta ao rapaz e também de moral da história. Algo como: nunca se case com uma garota que joga pôquer melhor do que você.
Felizmente para o espectador e infelizmente para Jacob, as coisas não são tão simples em “A história da minha mulher”. Se a qualidade essencial do jogador de pôquer é não deixar que o adversário descubra seus pensamentos, Lizzy é uma mestra.
Léa Seydoux, que interpreta magnificamente a ambígua heroína, faz todo o tempo a gente pensar em como seria fantástica uma Capitu, a de “Dom Casmurro”, interpretada por ela.
Estamos na década de 20 do século passado. Portanto, não é de espantar que o jogo de Lizzy seja tão complexo: ela acredita que a existência supõe a busca total de liberdade, um certo deixar-se levar por desejos e instintos.
Com isso, é capaz de deixar o marido enciumado a ponto de contratar um detetive para segui-la. Ou de trocar as longas viagens de navio por um cargo burocrático tão desinteressante que lhe deixa tempo livre para alimentar seu ciúme todos os dias e quase a toda hora.
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Enquanto isso, Lizzy jura amor por Jacob, ao mesmo tempo em que envia sinais de que pode muito bem ter um ou mais de um amante – nesse setor, a presença mais constante é Louis Garrel, aqui fazendo um tipo perfeito para ser odiado por Jacob e, por extensão, pelo espectador.
Ou Lizzy pode ter um ou mais amantes sem deixar de amar o marido loucamente. Ela é a ambiguidade em pessoa.
O belo filme da húngara Ildikó Enyedi mostra uma autora com fina sensibilidade para o feminino. A cada olhar, a cada gesto, Lizzy é capaz de dizer e desdizer, de se mostrar e se esconder, de se esquivar e atacar.
Sangue frio e turbulências
A diretora parece se interessar bem menos pelo lado masculino da história. Ou, em todo caso, compõe um Jacob bem menos interessante, embora não nulo. Seu forte é o profissionalismo, e seu melhor momento talvez seja quando enfrenta o incêndio em seu navio com sangue frio admirável.
Porém, isso só demonstra o quanto ele consegue se dominar as turbulências e incertezas da vida no mar, ao mesmo tempo em que parece à deriva em terra firme, entregue aos próprios sentimentos e às turbulências que Lizzy é capaz de provocar em sua vida.
As quase três horas de “A história da minha mulher” passam depressa, levadas por uma narrativa ágil, raramente elíptica, em que os sobressaltos do romântico comandante de navio não transbordam para o filme, deixando que o andamento seja a maior parte do tempo determinado pela vivacidade de sua fascinante mulher.
Essa fluência e o à vontade no tratamento do assunto não é frequente em coproduções como esta, que envolvem quase metade dos países europeus.
A diretora húngara controla sua nave com mão certeira o bastante para que seu filme não seja estraçalhado na babel em que se misturam alemães, franceses, italianos, sem contar os húngaros, que formam o essencial da equipe.
Dito isso, o choque bem construído por Ildikò Enyadi entre duas maneiras de estar no mundo, de encarar as coisas, encaminha o filme para um final bem surpreendente – sem relação alguma com jogos de cartas.
“A HISTÓRIA DA MINHA MULHER”
França, Hungria e Itália, 2021. Direção de Ildikó Enyedi. Com Léa Seydoux, Gijs Naber e Louis Garrel. Em cartaz no Centro Cultural Unimed-BH Minas (19h15) e no UNA Cine Belas Artes (Sala 3, 20h30).