Sessenta anos dedicados à música, meio século de memórias da noite de Belo Horizonte e muitas histórias para contar. Marilton Borges, o primogênito de Maricota e Salomão Borges – irmão de Márcio e Lô –, virou oitentão no último mês de maio, fazendo shows em vários espaços da capital mineira. Um deles ao lado do filho, o cantor, compositor e guitarrista Rodrigo Borges, no Bar do Museu Clube da Esquina – movimento musical que Marilton viu nascer dentro de sua casa, em Santa Tereza.
Cantor, compositor, violonista, tecladista e pianista, esse mineiro é testemunha da história da MPB no século 20 – e não só em Minas Gerais.
Em 1963, nas escadarias do Edifício Levy, no Centro de BH, Marilton conheceu Milton Nascimento, rapazinho que acabara de chegar de Três Pontas. “Estava indo trabalhar nos Correios e acabou a energia no prédio. Desci pela escada, ouvi um violão e uma voz diferente. Me apresentei, conversamos um pouco e o convidei para ir lá em casa, depois do serviço”, relembra.
Marilton foi o primeiro Borges que Milton conheceu. “Disse pra ele: também gosto de tocar violão, vamos nos encontrar depois do trabalho. Vá lá em casa, tem uma meninada que adora música”, conta. Ele tinha por volta de 20 anos na época. “Quando cheguei do serviço, lá estava ele na porta do prédio me esperando.”
Abrigo para Bituca
Foi uma farra só. “Com o tempo, Bituca acabou virando irmão. Minha mãe até o chamava de filho. Passado um tempo, ele se mudou para São Paulo e andou passando perrengues lá. Fui com a turma da banda Gemini VII comprar um teclado e nos encontramos. Infelizmente, Bituca não estava bem financeiramente. Falei pra ele: 'Vamos voltar e você fica lá em casa'. Trouxe Bituca de volta, lhe disse que poderia dar umas canjas comigo no Gemini VII e dividi o cachê com ele, o que fiz por diversas vezes.”
Em 1964, Marilton deixou o emprego nos Correios e virou músico profissional. “Quando o Wagner Tiso chegou a BH, criamos o quarteto Evolussamba. Era formado por mim (voz e violão), Bituca (baixo e voz), Wagner (piano) e Marcelo Ferrari (bateria). Depois, chegou de Guarani o baterista Paulinho Braga e montou um trio com o Wagner e o Bituca. Os dois também faziam coisas para o compositor Pacífico Mascarenhas, gravando discos do quarteto Sambacana”, relembra.
Milton conquistou o Brasil com “Travessia”, parceria com Fernando Brant, no Festival Internacional da Canção (FIC), realizado no Rio de Janeiro. “A partir dali, Bituca subiu igual a um meteoro e se tornou o grande artista que é até hoje”, lembra o amigo.
Corpo a corpo nas rádios
Em 1967, Milton lançou seu primeiro álbum pelo selo Codil. “Fui com ele a todas as rádios de BH, levando o álbum e pedindo ao pessoal para tocá-lo. Ele fazia uma música diferente, o pessoal não deu muita bola para o LP. Como eu tinha muitos amigos radialistas, pedi que tocassem as faixas. Com isso, Bituca ficou mais conhecido na cidade. Ele ainda não era muito conhecido por aqui, embora Elis Regina já houvesse gravado a 'Canção do sal'.”
Quando Milton se mudou para o Rio de Janeiro, Marilton se hospedava com ele. “Bituca ia nos lugares onde eu tocava lá. Na época, andava muito com o baixista, pianista e compositor pernambucano Novelli. Eles foram muitas vezes me ver tocar na Number One. Toquei também no Sambão e Sinhá, que pertencia ao cantor Ivon Curi, em Copacabana. Quando acabava o show, descíamos para tomar uma e Bituca estava sempre lá nos esperando.”
Marilton Borges lamenta não ter sido chamado para a despedida do amigo Bituca dos palcos, no ano passado, no Mineirão. “Nem sequer fui convidado. Confesso que fiquei triste, pois não entendi a razão de não estar entre os convidados, pois tocamos juntos, nunca brigamos e sempre fomos amigos. Acho que ele falhou como amigo nessa hora”, afirma.
Gemini VII, bailes da vida e Itacolomi
Marilton Borges é praticamente uma "enciclopédia" ambulante – ou melhor, cantante – sobre a noite de Belo Horizonte. Foi dono de bares famosos, como o 890 e o Marilton's Bar, entre outros.
Tudo começou quando o guitarrista Nazário Cordeiro, que se apresentava na Churrascaria Palácio, no Centro, o convidou para tocar lá. “Toquei uma noite e apareceu o Maquinho Quelotti e seu amigo Borô. Eles tinham um conjunto chamado Lancaster, precisavam de um cantor e me chamaram para fazer bailes com eles. Porém, havia também o Welton e seu Conjunto, de onde surgiu o Gemini VII, comigo (voz), Getúlio (sax), Rubinho (bateria), Marco Antônio Moreira (vibrafone), Toninho Costa (guitarra) e Gastão (contrabaixo). Fizemos uma reunião lá em casa e dali nasceu o Gemini VII.”
Não é exagero dizer que a banda Gemini VII é uma lenda da noite sessentista de BH. Assim como o compositor e acordeonista Célio Balona, que Marilton conheceu na extinta TV Itacolomi. “Havia um programa aos domingos e ele tocava lá. Ficamos amigos. Depois o Balona abriu a boate Uai, onde eu dava canjas”, conta ele.
No final dos anos 1960, Marilton ficou sabendo, por meio do radialista Assad de Almeida, que a carioca Turma da Pilantragem estava em BH e precisava de um cantor.
“Na época, o grupo era formado pela Malu Balona, irmã do Célio Balona, Regininha, Dorinha Tapajós e Edson Trindade. Fui para o Rio e passei a cantar com eles. O grupo durou de 1968 a 1970.” Criada por Nonato Buzar, a banda se destacou por arranjos suingados e dançantes. Fizeram parte da “Pilantragem” craques como os instrumentistas José Roberto Bertrami, Fredera e Raul de Souza.
No Rio com Jorge Benjor, Turma da Pilantragem e Milito
Marilton se mudou para o Rio de Janeiro, mas não gostava de morar lá, saudoso dos amigos, das rodas de violão e dos bailes. Na capital fluminense, o primogênito do clã Borges gravou com Maria Alcina e Jorge Benjor, além da Turma da Pilantragem.
“Fiz muito vocal, principalmente para trilhas de novelas, como 'O bofe', 'Supermanoela e 'Uma rosa com amor'. Entre idas e vindas, fui tocar na banda do maestro Osmar Milito, que se apresentava na boate Number One, em Ipanema. Na época, só brincava no piano, mas Milito sempre dizia: 'Você tem jeito para tocar esse trem, vai estudar'.”
E assim foi. “Parti para piano, mesmo, nos anos 1970”, explica ele, que se apresentava com Milito no programa “Show da Girafa”, na TV Globo. “Como saíamos tarde da boate, o maestro me pedia para ensaiar com a turma. Foi a partir dali que comecei a brincar mais seriamente no piano.”
Na banda de Milito, Marilton ensaiou com um violonista recém-chegado de Alagoas que ficaria em seu lugar: ninguém menos que Djavan.
Poderosos da TV Globo frequentavam a Number One. “A Maria Alcina era uma das nossas backing vocals. O Jorge Benjor também ia muito lá, gostava tocar e cantar conosco. Certa noite, o vi mostrar a música 'Fio Maravilha' para Maria Alcina, que adorou. Naquele dia, estavam lá Daniel Filho e o Boni, que disseram pro Jorge: 'Pode botar essa música no festival da Globo que ela vai ganhar'.”
'Fio Maravilha': ovação do público e desclassificação
Em 1972, a música foi inscrita no 7º Festival Internacional da Canção (FIC) e Maria Alcina arrasou. “Ficamos em primeiro lugar na etapa nacional, passamos para a internacional”, conta Marilton, que fazia backing vocal em “Fio Maravilha” ao lado de Márcio Lott, Suzana e Lula Messina. Severino Filho, integrante d'Os Cariocas, era o maestro.
“O ginásio do Maracanãzinho estava repleto de flamenguistas, que gritavam: 'Fio Maravilha'!, 'Fio Maravilha'.! Uma das regras do festival era que o concorrente não fizesse bis, sob pena de desclassificação. Acabamos a nossa apresentação e o Boni ficou gritando: 'Volta. Volta, eu estou mandando'. O maestro perguntou: É para voltar mesmo?'. E Boni: 'É claro, estou mandando. Pode repetir, porque sou eu quem manda aqui. Fizemos o bis e fomos desclassificados”, relembra o mineiro.
Resultado: por causa de Boni, o troféu do Galo de Ouro da etapa internacional foi para o americano David Clayton-Thomas, que cantou “Nobody calls me prophet”.
De volta a BH nos anos 1970, Marilton Borges foi cantar na boate L'Hermitage. “Certo dia, o pianista se demitiu e fui obrigado a substituí-lo. Ali me sentei ao piano e não levantei mais. Foi lá também que conheci minha mulher, a Tatá (Maria Carmem Borges).”
Marilton, então, passou a ser “o pianista da moda” de BH. Artistas faziam questão de se apresentar com ele. “Achavam que eu tinha a manha de acompanhar. Realmente, ao longo desses anos, me especializei em acompanhar cantores e cantoras”, comenta.
O homem da noite de BH
Borges montou várias casas de sucesso na noite da capital mineira. Com o empresário Flávio Américo, ele abriu o Bar 890, no Bairro dos Funcionários. “A casa vivia lotada”, conta. “Depois, montei o Pau de Arara, na Savassi, onde tive uma noite histórica. Depois de um show no ginásio do Mackenzie, Gilberto Gil apareceu lá com sua trupe e tocamos a noite toda”, relembra.
Com Eber Borges, que trabalhava na Rádio Guarani, Marilton montou o bar Reco-Reco, na Savassi. “Mais tarde, já em 2006, montei o Marilton's Bar, em Santa Tereza, mas cheguei à conclusão de que músico não se dá bem como dono. É uma coisa ou outra, pois o nosso negócio é tocar, cantar e ver o pessoal se divertir.”
A extensa carreira na noite é um orgulho para Marilton Borges. “Acompanhei muitos cantores, fiz direção musical para vários artistas. Em BH, toquei com quase todo mundo. No início de 1970, de volta a BH, fui tocar com o grupo de Gilberto Santana, mas a turma do Gemini VII me chamou de volta e fui novamente tocar com eles”, relembra.
“É uma longa história, daria um livro. Faria tudo de novo”, garante. Em 2019, Marilton Borges lançou o álbum autoral “Do meu jeito”.