Resultado de um processo que se estendeu por nove anos, o filme “Natureza morta”, de Clarissa Ramalho, que estreou em 2020 na 23ª Mostra de Cinema de Tiradentes, chega finalmente ao cartaz em Belo Horizonte. O longa, que fecha a trilogia iniciada com “Djalioh” (2011) e seguiu com “Paixão e virtude” (2014), pode ser visto na sala do Centro Cultural Unimed-BH Minas até a próxima quarta-feira (5/7).
“Natureza morta” se passa no século 19 e conta a história de Lenita, jovem culta à frente de seu tempo, criada pelo pai em um contexto no qual as mulheres eram preparadas para o casamento. Com a morte do pai, a moça se muda para a fazenda do avô adotivo, onde conhece Manuel Barbosa, com quem vive intenso relacionamento e a descoberta da sexualidade.
Histeria, sexualidade e Flaubert
Clarissa Ramalho conta que a trilogia, intitulada “Inquietante estranheza”, começou a tomar forma em 2010, por iniciativa de seu companheiro, o cineasta Ricardo Miranda, que morreu em 2014. Nos dois primeiros filmes, dirigidos por ele, ela foi corroteirista e diretora-assistente. “Djalioh” e “Paixão e virtude” são adaptações de contos de Gustave Flaubert (1821-1880).
“Os títulos da trilogia têm em comum o fato de tratarem de questões de um século específico, relacionadas ao feminino, à forma como as mulheres eram inseridas naquele contexto. São filmes que perpassam a questão da histeria, da sexualidade, da mulher como objeto de estudo de homens médicos”, diz.
“Natureza morta” é adaptação do romance “A carne”, do escritor mineiro Júlio Ribeiro (1845-1890). “Como eram adaptados de Flaubert, os dois primeiros filmes tinham um ponto de vista muito europeu sobre o Brasil. Agora é o ponto de vista de um brasileiro sobre o Brasil, a forma como ele enxergava as questões do feminino presentes nos três filmes. Em 'Natureza morta', deixo de tratar da histeria apenas feminina, pois ela é compartilhada pelo casal protagonista”, destaca.
O longa foi filmado em maio de 2019, na Fazenda Sinimbu, em Cataguases, cidade geradora do Polo Audiovisual da Zona da Mata. Os papéis principais são desempenhados por Mariana Fausto (Lenita) e Rômulo Braga (Manuel Barbosa). O elenco conta com Paulo Azevedo e Cátia Costa, além da atriz e diretora Helena Ignez, que atua como a narradora da trama.
Clarissa explica que o título da trilogia se refere a vários elementos intrínsecos à linguagem dos filmes, pensados para causar estranhamento. Os personagens, por exemplo, narram a história para o espectador, mas também para eles próprios. “É uma mise-en-scène criada. O que se diz não é necessariamente o que se apresenta em cena. Tem algo de brechtiano nessa representação, com o ato de olhar para a câmera”, diz.
Tal estranhamento foi sentido, em diferentes níveis, na estreia do filme na Mostra de Cinema de Tiradentes, relembra a diretora.
“No início de 2020, havia muitas pautas sendo discutidas, dando a tônica em muitos filmes participantes da mostra. Como entro com um filme ambientado no século 19 naquele momento de tantas urgências do tempo presente? A recepção foi dividida, muitas pessoas gostaram, elogiaram, talvez por conhecerem a trilogia, mas outras ficaram me questionando nesse sentido”, revela.
O sofrido percurso de Clarissa
Abandonar a trilogia ou mudar seu direcionamento não era opção quando a equipe partiu para as filmagens, em função do percurso que havia sido trilhado – um percurso tortuoso, diga-se, marcado pela morte não só de Ricardo Miranda, mas também do codiretor Luiz Rosemberg Filho, em 2019, enquanto transcorriam as gravações em Cataguases.
“Quando Ricardo morreu, fiquei na dúvida se seguia ou não em frente com o projeto. Resolvi continuar, desde que tivesse financiamento, e isso acabou estendendo prazos. Ano após ano, entrei em editais tentando fazer com que o filme acontecesse. Em 2017, ganhei o Prodecine (Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Brasileiro) e fomos filmar em 2019. Pouco antes de seguirmos para Cataguases, Rosemberg adoeceu e tivemos a notícia de sua morte durante as filmagens”, conta.
“Tomar o filme como meu foi um processo de amadurecimento”, diz Clarissa Ramalho. “Eu convidava Rosemberg para assumir o projeto e ele me dizia: 'Não, esse filme é seu'. E pontuava: 'Mas é um filme do Ricardo ainda, você tem de mexer no roteiro e encontrar o seu olhar'. Foi um processo marcado por perdas dolorosas, mas também por minha vontade de não deixar nada inacabado”, destaca a diretora.
“NATUREZA MORTA”
• Brasil, 2020. Direção: Clarissa Ramalho. Com Mariana Fausto, Rômulo Braga e Helena Ignez. Em cartaz às 20h, no Centro Cultural Unimed-BH Minas