a aurora boreal

Imagem da aurora boreal capturada na ilha Bardsey (Inglaterra), em fevereiro passado

EMYR OWEN/AFP

 
Num texto sobre a prosa do americano H.G. Carillo, o uruguaio Eduardo Galeano escreveu algo assim: “Você sabia que a linguagem pode ser lida e ouvida e vista e tocada? Você sabia que você a pode cheirar e sentir o sabor dela?” A tradução feita aqui é livre, mas a essência está evidente. Galeano falava da capacidade de extrapolação da palavra que Carillo alcançava em seus livros, uma experiência sinestésica além da leitura.
 
“Formas feitas no escuro”, da paulistana Leda Cartum, transita por esse mesmo universo sensorial, a partir de textos breves de difícil categorização. Chamar todos eles de minicontos pode ser o mais próximo para os classificar em um gênero, mas não dar nome a eles talvez seja a definição mais acurada e mais alinhada ao hibridismo formal que reflete o limbo também das histórias.
 
O livro brinca com o que é concreto e o que é invisível, que podem estar no mesmo objeto e na mesma criatura. As curtas histórias acontecem em lugares do meio, entre o passado e o futuro, entre o real e o onírico, entre dois mundos que podem coexistir.

São descritos processos e formas que desafiam o tempo e o espaço —a efemeridade e a perenidade são inconstantes e alternantes, e a geografia é deslocada, como se as coisas estivessem no lugar errado.
Os textos são cutucões na imaginação, oferecendo espaços em branco a serem preenchidos. Ao mesmo tempo, o que está escrito foge de tal modo do que sabemos e conhecemos que por vezes é difícil imaginar alternativas mais audazes.

Divididas em três partes, as histórias se conectam em cada uma pela gradação de fantasia, pela nitidez do contorno e pelos aspectos formais. Na primeira, “Formas feitas”, estão contos de estrutura mais convencional, em que começo, meio e fim são distinguíveis para o leitor —mesmo que os enredos sejam fabulares e cheios de invencionices.


Monstros, bichos e seres inomidados

 
As criaturas que nos levam por veredas criativas, que instigam a pensar se estão mesmo ali ou se são nossas tribulações internas refletidas, aqui também são mais próximas de um repertório de monstros, bichos e seres inominados que temos de outras narrativas.

“No escuro, por esses buracos finos, entravam devagar os tentáculos de um polvo, que aos poucos ocupava a casa e se arrastava no chão da sala, transpunha os limites do quarto e se enrolava em torno da cama.”

A segunda parte, “Formas feitas no escuro”, tem um aprofundamento da experiência sensorial, diante da dificuldade de enxergar.
 
A narração em terceira pessoa, que marcava os primeiros textos, dá lugar à segunda, pondo o leitor no meio de enredos mais embaralhados e mais difusos, como no apagar das luzes. “De fora da casa assombrada, você escuta as muitas vozes que nos cômodos conversam entre si. São línguas estranhas que já foram esquecidas ou transformadas em outras, mas as vozes não sabem disso e seguem falando alto.”
 
Por fim, o terceiro trecho, “Toda luta é contra as formas”, é quando os olhos vão se acostumando à escuridão e os desenhos que pareciam disformes ganham contornos mais nítidos e mais decifráveis. O leitor atravessou a noite, sobreviveu a ela e nota o que muda nas formas quando amanhece.

Em primeira pessoa, com uma narradora que compartilha sensações além de descrições, as histórias misturam atividades mundanas (guardar as compras ao chegar em casa), transformações mágicas (cidades de areia com ruas e avenidas que alagam), criaturas e demônios que aparecem em sonho (vindos do futuro, pura ansiedade), fios misteriosos que circundam o ambiente e nos conduzem (uma criatura com um quê de Alice, que perde o relógio e se transporta de um cenário a outro).
 
“O sol está tão alto no céu que vejo cada vez menos. É meio-dia e tateio à minha frente para não cair nem tropeçar. Escuto: as coisas que conheço vão encolhendo, diminuindo, desaparecem —os raios de luz alcançam quase toda a extensão do que não consigo enxergar.”
 
Chama a atenção como Cartum dá conta de tanta coisa em textos breves. Com uma economia de palavras, a autora consegue sugerir um enredo inteiro, sem o fechar a possibilidades delirantes; um equilíbrio poético entre o que precisa e o que não precisa ser narrado.
 
No escuro não se vê perfeitamente, então está na sensibilidade de outros sentidos a aposta de que uma história se faça possível. E a escritora cria uma espécie de tela vocabular, em que as palavras desenham e pintam —não só contam. É uma experiência similar à das artes visuais, em que há um pouco de interpretação, um pouco de contemplação e um pouco de imaginação.
 
A leitura de “Formas feitas no escuro” é como acordar daqueles sonhos que parecem reais demais, em que vamos tentando desvendar as imagens inesperadas que apareceram, mas, mesmo quando a história não faz completo sentido, há uma sensação quase palpável, um sentimento que nos acompanha.
 
Ao fim do livro, é isso que fica. Mais do que um conto, o leitor leva consigo a experiência sensorial de ter pisado com um pé na vida e outro no sonho. É um belo e incômodo jeito de despertar. (Gabriela Mayer, Folhapress)
 
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“FORMAS FEITAS NO ESCURO”

Autora: Leda Cartum
Editora Fósforo (88 págs.)
R$ 64,90; R$ 49,90 (ebook)