O ator Carlos Francisco, de 61 anos, é uma pessoa disciplinada. Toda vez que entra em um set, desliga o celular. Mas sabe-se lá por qual razão, um dia, já no final da filmagem de “Curtas jornadas noite adentro” (2021), de Thiago Mendonça, se esqueceu. O telefone tocou e ele, envergonhado, atendeu. Do outro lado da linha estava Fellipe Fernandes, assistente de direção em “Bacurau” (2019).



De bate pronto, Fellipe perguntou se Carlos poderia ir imediatamente para o Rio Grande do Norte para participar do filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Naquele momento não dava – ele estava em São Paulo filmando, precisava de pelo menos dois dias. Fellipe topou. Carlos voou na data combinada, sem saber o que iria encontrar. Já tinha ouvido falar de Kleber, mas sequer havia assistido a “Aquarius” (2016), até então o mais comentado filme do cineasta pernambucano.

Só chegando lá – no povoado de Barra, distante 300 km de Natal – o ator mineiro teve consciência da “dimensão do filme”. Ficou sabendo por Kleber que havia sido escolhido por meio de um teste para outro filme e também por uma cena do curta “Nada” (2017), de Gabriel Martins. “Bacurau” foi um divisor de águas para muitos dos profissionais envolvidos – Carlos Francisco inclusive.



A cena que seu personagem, Damiano, e sua companheira, Deyse (Ingrid Trigueiro), protagonizam no longa, é catártica, “um momento de grito entalado na garganta”, conforme define o ator. A importância do filme, aliada à força desta sequência, colocaram, com o perdão do chavão, Carlos Francisco no mapa do cinema. 




Indicação 

Até então, o ator já havia feito outras produções, curtas e longas, mas o impacto de “Bacurau” jogou luz em sua carreira. E outro filme, este com uma participação bem maior, sedimentou sua trajetória: “Marte Um” (2022), de Gabriel Martins, em que interpretou um dos quatro protagonistas, o porteiro Wellington, cruzeirense fanático e pai da família Martins – pelo papel o ator foi indicado ao Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, que será realizado em 23 de agosto, no Rio de Janeiro.



As luzes, aliás, continuam acesas para ele. Há duas semanas Carlos estava em Cataguases, Zona da Mata mineira, preparando-se para ir para o set de “Ana, en passant”, filme de Fernanda Salgado, quando veio a notícia: ele tinha vencido o prêmio de atuação em produções internacionais no Tribeca Film Festival (festival nova-iorquino criado há duas décadas por Robert De Niro).

“Vocês estão de brincadeira, me gozando”, foi a primeira reação de Carlos ao saber da notícia. O prêmio foi pelo filme “Estranho caminho”, de Guto Parente (produção que levou também os troféus de melhor narrativa, roteiro e fotografia no Tribeca). Na história rodada em Fortaleza, Carlos interpreta Geraldo, pai do protagonista, David (Lucas Limeira).





Pai e filho não se falam há uma década. David mudou-se para Portugal, mas retornou para o Ceará para participar de um festival de cinema. Só que o início da pandemia pegou a todos. O festival é interrompido, a pensão onde o jovem estava hospedado é fechada e o dinheiro começa a diminuir. Sem ter a quem recorrer, ele vai atrás do pai – e a relação entre os dois é o cerne do drama. “Estranho caminho” começou só agora a ser exibido em festivais, então deve demorar um pouco para chegar ao circuito comercial. 

Mas Carlos poderá ser visto em outra produção em breve. Com pré-estreia nesta quarta (5/7), às 20h30, no UNA Cine Belas Artes – antecipando a estreia oficial, no dia seguinte – “Canção ao longe”, novo longa-metragem de Clarissa Campolina, traz Carlos como o motorista Miguel. A participação na história que acompanha o rito de passagem para a vida adulta de uma jovem arquiteta acabou lhe valendo o prêmio de melhor ator no Festival de Brasília de 2022.

Lançamentos 

Carlos vai acompanhar o lançamento do longa-metragem mineiro a distância. Ficará até o fim de julho em São Paulo, rodando “As florestas da noite”, de Priscyla Bettim e Renato Coelho, no qual também fará a preparação de elenco. 







Além destes, tem vários outros filmes já rodados e aguardando lançamento: “Enterre seus mortos”, de Marco Dutra; “Idade da pedra”, de Renan Rovida; “Antes do fim”, de Thiago Mendonça”; “Fera na selva”, também de Clarissa Campolina, além dos curtas “Rinha”, de Rita Pestana, e “Sol”, do já citado Mendonça (ambos em finalização).

É muita coisa para um ator cuja carreira no cinema só engrenou quando ele retornou para Belo Horizonte, há uma década. E justiça seja feita, ele esteve no elenco de produções mineiras anteriores a “Bacurau”, como “Arábia” (2017), de Affonso Uchoa e João Dumans; “No coração do mundo” (2019), de Gabriel e Maurilio Martins, e “Rua Guaicurus” (2019), de João Borges.

Nascido e criado em Santa Tereza, na Rua Salinas, bem ao lado da Praça Duque de Caxias, Carlos começou a carreira fazendo teatro amador nos anos 1980. Em 1991, mudou-se para São Paulo. Passou muitos anos pagando as contas como vendedor de caminhões. O teatro esteve sempre no foco, mas a carreira só começou a se desenvolver em meados dos anos 1990, quando ele participou de cursos de formação de atores na Oficina Cultural Oswald de Andrade.





Um marco desse período foi a participação no espetáculo “O assassinato do anão do caralho grande”, texto inédito de Plínio Marcos que foi encenado com 35 atores. Esta experiência está na gênese do grupo Folias, criado em 1997 – Carlos integra o núcleo fundador. Dois anos mais tarde, quando o Folias conseguiu um galpão para ser sua sede, ele passou também a gerenciar o espaço, na ativa até hoje, com uma série de ações.

“Eu tinha vontade de fazer cinema, mas não tinha a menor condição, por falta de tempo. Eu vivia em função da companhia de teatro”, conta ele, que chegou a fazer pontas em algumas produções da época – “Não conseguia nem uma diária inteira”. Pensava em voltar para BH para ficar próximo da família e começou a se desligar do repertório do grupo. Também passou a fazer vários curtas – os filmes do diretor paulista Thiago Mendonça foram sua porta de entrada para o cinema.



Em 2013, com a mulher, que é pedagoga, e o filho, hoje arquiteto, arrumou as malas e retornou para casa materna. “Sou de Santa Tereza desde que aqui era mato”, brinca Carlos. E foi também aqui que sua carreira virou cinema. “Os próprios trabalhos é que, de alguma forma, foram me levando para os próximos”, conta ele.





Mesmo que tenha retornado para casa quando a produção audiovisual mineira tivesse dado início a sua efervescência, Carlos admite que aqui chegou sem muita perspectiva. Era um pensamento quase como o de Wellington, seu personagem em “Marte Um”, que, em uma das cenas mais tocantes do filme, diz para o filho Deivinho: “A gente dá um jeito”.

“Quando vim para Belo Horizonte, eu queria ficar perto da minha mãe. Sobre como ia ser a minha vida, ia pensar depois. Mas confiava em que ia dar certo.” Carlos não tinha projeto algum, fosse teatro ou cinema. 

“Quando cheguei, recebi um recado do Chico Pelúcio (do Grupo Galpão) para que fosse tomar um café com ele. Ficamos algumas horas conversando, ele me disse que não tinha nada para me oferecer concretamente, mas que eu pensasse no que queria, fizesse uma proposta e que ele tentaria viabilizar. Acabou que não fiz a proposta para o grupo, não voltei, mas aquele momento plantou algo na minha alma. (A conversa) Me tirou medos, rancores. Vi que não estava só, desamparado”, conta.

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